No fim de 2018, foram promulgadas duas leis relacionadas com o mercado
imobiliário. A primeira delas é a Lei n. 13.786, que regula o conteúdo dos
contratos de aquisição de terrenos e unidades em edifícios ou condomínios de
lotes, conferindo o direito de arrependimento na aquisição do imóvel em até
sete dias a contar da data da assinatura do contrato, tanto no estande de
vendas quanto fora da sede do incorporador. Tal dispositivo isenta de multa o
incorporador imobiliário em caso de mora de até cento e oitenta dias a contar
da data da entrega do imóvel, adotando-se entendimento jurisprudencial fixado
no Recurso Especial n. 1.582.318-RJ do Superior Tribunal de Justiça, além de
estabelecer o valor a ser restituído em caso de distrato ou inadimplemento
contratual – o qual pode chegar a até 50% do que foi devidamente pago – quando
a extinção desse contrato ocorrer ainda na fase de construção do edifício.
O segundo texto normativo, que entrará em vigor no dia 4 de fevereiro de
2019, nos termos do art. 1º da LINDB, é a Lei n. 13.777, a qual insere no
Código Civil brasileiro a regulamentação da multipropriedade imobiliária. Essa
nova espécie de condomínio, conhecido como “time-sharing” em inglês,
“propriedad compartida” em espanhol, “multiproprieté” em francês e “multiproprietà”
em italiano, consiste no uso e fruição de imóvel por determinado período de
tempo ao longo do ano, em revezamento com outros multiproprietários. A
multipropriedade imobiliária liga-se ao setor de turismo, razão pela qual vinha
sendo regulada pela Deliberação Normativa n. 378/1997, da Embratur, sob a
denominação de “sistema de tempo compartilhado em meios de hospedagem de
turismo”.
Trata-se de alternativa à tradicional aquisição de imóveis em cidades
litorâneas para veraneio (muito comum nos anos do século XX), os quais
permanecem desocupados na maioria dos meses do ano, gerando despesas aos
proprietários com contribuições condominiais e IPTU. Também serve a quem busca
hospedagem em imóveis alugados, resorts e colônias de férias. Aliás, neste último
exemplo, restava ao interessado a opção de ir nas épocas de baixa temporada ou,
então, inscrever-se em sorteio de vagas nas de alta temporada, o que era
frustrante para quem não tinha sido contemplado.
Agora, nestes dias em que vivemos, com custos de transação praticamente
inexistentes, é possível acessar informações detalhadas sobre hotéis, casas,
apartamentos e quartos no mundo inteiro – e as reservas são feitas com muita
facilidade pela Internet. Isso sem falar na oferta de cruzeiros marítimos.
À vista disso, por que razão se deveria incentivar a multipropriedade
imobiliária no Brasil mediante sua regulação no Código Civil?
É certo que cada pessoa possui liberdade para decidir quanto à melhor
forma de desfrutar dos momentos de lazer. Todavia, algumas considerações
precisam ser feitas acerca desse novo direito real derivado da propriedade.
A oferta de empreendimento instituído sob a forma de multipropriedade
imobiliária sujeita-se aos arts. 30 e 31 do Código de Defesa do Consumidor.
Contudo, não se vê comumente tal proposta ser apresentada nos meios de
comunicação ou por e-mail. Oferece-se aos hóspedes ou turistas de determinada
cidade que vierem a passar por perto do local cujos apartamentos estão sendo
comercializados. É comum que os vendedores perguntem ao potencial comprador se
está gostando do hotel ou da cidade em questão e, sendo positiva a resposta,
oferecem a possibilidade de ser "proprietário" de um dos apartamentos
do hotel para usá-lo por uma ou duas semanas ao longo de um ano. O turista, que
não esperava por essa ideia – além de estar empolgado com o bem-estar
provavelmente vivenciado durante as férias –, não está no melhor momento para
refletir adequadamente sobre o que virá a adquirir.
Caso opte pela aquisição, passada a euforia, chegar-se-ão os boletos
para pagamento das despesas mensais. É, na prática, nesse momento em que o
consumidor perceberá o impacto do pagamento da contribuição condominial no
orçamento familiar. Virão as despesas ordinárias e extraordinárias para a
manutenção do empreendimento em bom estado de conservação e com mobiliário
renovado. O período no qual terá acesso ao apartamento pode ser
inconveniente, por exemplo, por coincidir com o período em que está
trabalhando. As chances de o multiproprietário não desejar mais retornar ao
imóvel adquirido são grandes, porque ninguém precisa passar férias no mesmo
local como se fazia antigamente. Dificilmente se interessará em participar das
assembleias condominiais. A rentabilidade que poderá ter ao alugar a
multipropriedade no período a que lhe cabe não é garantida, uma vez que nem
sempre haverá alguém interessado em hospedar-se no local nesse período.
A consequência é previsível: o multiproprietário acaba por requerer a
desistência do contrato ou simplesmente deixa de pagar as prestações relativas
ao imóvel. A este se aplicará a Lei n. 13.786: impossibilidade de restituição
do valor pago a título de comissão do corretor de imóveis, pagamento das
obrigações relacionadas ao imóvel eventualmente inadimplidas e perda de parte
dos valores pagos a título de indenização ao incorporador do empreendimento.
Ao final, a fração da multipropriedade será comercializada com outra
pessoa, que também poderá desistir do contrato pelos mesmos motivos do
multiproprietário anterior. Destarte, a função social do contrato, a qual
consiste, nesse caso, em proporcionar o acesso ao direito à propriedade ou à
concretização do direito ao lazer, é violada reiteradamente.
Não pretendo afirmar aqui que deve ser proibida a multipropriedade
imobiliária no Brasil, tampouco que se trata de algo ilegal - ao contrário, até
foi inserida no Código Civil! Ademais, há quem realmente goste de retornar
várias vezes a determinado hotel ou resort. Porém, creio que poucas pessoas têm
informações suficientes sobre esse novo direito real. Caberá aos órgãos de
defesa do consumidor e ao Ministério Público observarem como a oferta desse
tipo de empreendimento é realizada no país, para que, no futuro, não se pense o
seguinte acerca da multipropriedade imobiliária: “antes nunca do que tarde”.
0 comentários:
Postar um comentário