Se
determinada pessoa crê que sofreu uma lesão ou que se encontra na iminência de
sofrê-la, poderá resolver-se amigavelmente com o suposto agressor. Havendo,
entretanto, resistência deste ou daquele, poderá o interessado provocar a
atividade estatal jurisdicional, possuindo razão ou não. Eduardo Couture afirma
que é direito do “demandado” o comparecimento perante o tribunal[1],
o que significa dizer que, mesmo valendo-se do Direito de Petição
(artigo 5º, XXXV, da CR/88), não haverá um vínculo de exigibilidade entre
autor e réu, sujeitando este à vontade daquele. Admite-se, então, com Eduardo
Couture, que, até a existência da coisa julgada, impera-se a incerteza[2].
Ambas as
partes, dessa forma, almejam uma resposta decisória[3] do
Estado; ao Estado-Judiciário é exigido um pronunciamento de mérito satisfativo
(artigo 4º do CPC/2015), seja através de um julgamento antecipado (parcial
ou total) ou não (de mérito). Entretanto, antes do réu opor-se — através da
contestação — à pretensão do autor, o CPC/2015 pretendeu, na visão de Luiz
Guilherme Marinoni, “estimular a solução consensual dos litígios (art. 3º,
§2º), concedendo à autonomia privada um espaço de maior destaque no
procedimento”[4].
Dessa
forma, o artigo 334 do CPC/2015 estabeleceu que, “se a petição inicial
preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do
pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência
mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte)
dias de antecedência”. O autor será intimado por meio do seu advogado, e o réu
deverá ser citado[5] (artigo 238,
CPC/2015) para comparecerem na audiência inaugural.
Da
leitura do artigo 334, parágrafo 4º, do CPC/2015, infere-se que a
realização da audiência inaugural é obrigatória[6],
admitindo-se, todavia, a sua não realização somente “se ambas as partes
manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual
ou quando não se admitir a autocomposição” (artigo 334, parágrafo 4º,
I e II).
Conquanto
tenhamos admitidos em outros trabalhos[7],
escorados na doutrina de Luiz Guilherme Marinoni, que se deve fomentar o
diálogo e os comportamentos cooperativos e não agressivos dos sujeitos
processuais, de modo a reconhecer que, “muitas das vezes, a decisão judicial
não é a solução mais adequada”, considerando “o modelo multiportas de
composição de litígios”[8],
devemos refletir sobre duas situações das quais concordamos serem hipóteses em
que se dispensa a designação da audiência inaugural[9],
em virtude da (parcial) desarmonia entre a Lei de Locação de Imóveis urbanos
(Lei 8.245/1991) e o CPC/2015 e a incompatibilidade da autocomposição,
respectivamente, nos procedimentos comuns cujas pretensões sejam o despejo por
falta de pagamento e o despejo por denúncia vazia.
O
artigo 4º da Lei 8.245/1991, que disciplina a locação de imóveis urbanos,
ratifica um dos princípios que norteiam o Direito Contratual: pacta
sunt servanda; “as convenções contratuais devem ser cumpridas”[10].
Nos dizeres de Sílvio Venosa, “fixado o pacto para um prazo determinado, ambas
as partes contam com o exaurimento desse prazo, no mínimo, pois assim foi
convencionado”[11].
Logo, considerando aquele dispositivo, não pode o locador desfazer a locação e
reaver o imóvel antes do término do prazo contratual[12],
salvo se, dentre outras alternativas, ajuizar um procedimento (comum)
pretendendo o despejo em razão da falta de pagamento de aluguel e demais
encargos (artigo 9º, III, da Lei 8.245/1991).
Dessa
maneira, ajuizado o procedimento judicial de despejo por falta de pagamento
pelo locador, o artigo 62, II, do mesmo dispositivo, faculta ao locatário
e fiador “purgar a mora e evitar a rescisão do contrato desde que efetuem, no
prazo de 15 dias, contados da citação, o pagamento de débito atualizado,
independente de cálculo e mediante depósito judicial”[13].
O que se
percebe é que tal dispositivo possui sintonia com o revogado CPC/73, em
especial com o artigo 285, o qual previa que, “estando em termos a petição
inicial, o juiz a despachará, ordenando a citação do réu, para responder; do
mandado constará que, não sendo contestada a ação, se presumirão aceitos pelo
réu, como verdadeiros, os fatos articulados pelo autor”, ou seja, o prazo de 15
dias concedido coincidia tanto com a possibilidade de purgar-se a mora quanto
com a apresentação de resposta — em especial a contestação. Ocorre que, com o
advento do CPC/2015, tal sintonia se desfez[14],
já que, efetivada a citação, facultar-se-á ao réu tanto purgar a mora em 15
dias quanto comparecer na audiência inaugural de conciliação ou de mediação, a
partir da qual, não havendo acordo, iniciará o prazo para o oferecimento da
contestação (artigo 335, I, CPC/2015)
Assim, existente um novo
procedimento entre a citação e a apresentação de defesa do réu — a audiência do
artigo 334 —, não é razoável facultar ao locatário e fiador purgar a mora
em 15 dias, obedecendo o que determina a Lei 8.245/1991, e, posteriormente,
comparecer à audiência inaugural, cujo propósito seria dirimir um conflito
sobre a realização de um pagamento que aqueles já tiveram a oportunidade de
fazer e não o fizeram; não purgada a mora no prazo mencionado, resta
imprestável a realização da audiência inaugural, cuja designação com
antecedência mínima de 30 dias e máxima indefinida apenas fomentaria e
aumentaria a inadimplência dos locatários e dos fiadores, uma vez que estes
poderiam aguardar a realização da audiência — cuja espera poderia chegar a
quatro meses, por exemplo —, e, frustrada a autocomposição, ganharem mais 15
dias úteis para se justificarem sobre a (im)pontualidade dos encargos, lesando
sobremaneira o locador.
Logo,
inadmitindo-se a designação da audiência inaugural[15],
resta-se razoável, então, manter-se a concomitância da purgação da mora e da
apresentação da contestação, assim como era no CPC/1973[16],
a partir da qual, saneado e organizado o processo, permitir-se-á o julgamento
imediato (antecipado) do mérito, o que reduziria a sujeição do locador à
inércia proposital do locatário.
Ainda,
vale citar outro procedimento que merece a atenção do operador do Direito que
nos obriga a repensar a obrigatoriedade da audiência inaugural, ou seja, aquele
cuja pretensão é a rescisão contratual, com o consequente despejo, em razão da
intenção de retomada do imóvel simplesmente porque o locador, verificando a
indeterminação do prazo contratual, não deseja mais a mantença da locação
(denúncia vazia). Nesses casos, indeterminando-se[17] o
contrato, o locador poderá denunciá-lo por escrito, desde que concedidos ao
locatário 30 dias para a desocupação (artigo 57 e artigo 46,
parágrafo 2º, da Lei 8.245/1991)[18].
“A notificação denunciando a locação autoriza, decorridos seus trinta dias, o
ajuizamento da ação de despejo.”[19]
Dessa
maneira, cremos que o fato de o locatário notificado não desocupar o imóvel em
30 dias, e proposto o procedimento judicial, resta imprestável a audiência
inaugural de conciliação ou de mediação, vez que resta claro que o locador
almeja apenas a retomada do imóvel — o despejo do locatário; ausente, portanto,
a possibilidade de autocomposição (334, parágrafo 4º, II, CPC/2015). Insistir
na audiência inaugural, neste caso, é tratá-la como se audiência de ratificação
fosse (Lei 6.515/1977): é perguntar para o locador se ele tem certeza que
deseja rescindir o contrato. Não faz sentido, data maxima venia!
Destarte,
reconhece-se, como dito outrora, a importância do aperfeiçoamento e
aprimoramento das técnicas de resolução de conflito, de modo a retirar o
protagonismo das partes e do juiz, destacando a audiência inaugural e os
centros judiciários de solução dos conflitos[20].
Contudo, as individualidades dos dois procedimentos expostos acima devem
direcionar-nos ao reconhecimento de que a audiência inaugural não será
realizada por ser inócua (primeiro caso) e por não admitir a autocomposição
(segundo caso), sendo a sua designação pro forma[21],
pois outros mecanismos já foram utilizados na tentativa de fazer desaparecer o
conflito.
[1] Nas palavras
de Eduardo Couture: “Quando o demandado promover sua demanda perante o Tribunal
poderá ou não ter razão, e, contudo, ninguém terá de discutir seu direito para
se dirigir ao Tribunal pedindo-lhe uma sentença favorável. O que o demandado poderá
lhe negar é o seu direito de obter uma sentença favorável, mas nunca seu
direito em comparecer perante o Tribunal. Esse é um direito que pertence ainda
aos que não têm razão” (COUTURE, Eduardo J. Introdução ao Estudo do Processo Civil. Trad. Hiltomar Martins Oliveira.
Belo Horizonte: Líder, 2008, p. 18).
[2] COUTURE, Eduardo J. Introdução ao Estudo do Processo Civil. Trad. Hiltomar Martins Oliveira.
Belo Horizonte: Líder, 2008, p. 54.
[3] Reconhece-se que, a partir do CPC/2015,
o interessado almeja não somente a sentença, mas, também, a decisão
interlocutória, uma vez que a partir desta poderá admitir-se uma execução
definitiva através do julgamento imediato parcial do mérito, nos termos do
artigo 356, parágrafo 3º, do CPC/2015.
[4] MARINONI, Luiz Guilherme et alli. Novo Curso de Processo Civil. Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 179.
Da citação surgirá a possibilidade de o réu apresentar a sua resposta,
salientando que alguma dessas manifestações serão apresentadas posteriormente à
audiência inaugural (artigo 335, I, CPC/2015), enquanto outras deverão ser
apresentadas antes (artigo 113, parágrafo 2º, CPC/2015). Sobre este
último, ver em BRETAS, Ronaldo de Carvalho Dias et alli. Estudo Sistemático do NCPC. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p.
117.
[6] Alexandre Freitas Camâra adverte que,
em razão da voluntariedade da mediação e da conciliação, a realização da
audiência inaugural não é obrigatória, bastando que uma das partes manifeste o
seu desinteresse (CAMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2016, p. 201).
[8] MARINONI, Luiz Guilherme et alli. Novo Curso de Processo Civil. Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 181.
Da leitura do artigo 1.046, parágrafo 2º, do CPC/2015, o qual admite que
“permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em
outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código”, defender-se-á
neste ligeiro trabalho que o réu deverá ser citado não para comparecer na
audiência inaugural, sendo a sua resposta (contestação, purgação da mora)
apresentada nos termos do artigo 335, III, do CPC/2015.
[12] Nada impede que as partes, de comum
acordo, rescindam o contrato. Ademais, registra-se que o locatário poderá devolver
o imóvel, desde que pague a multa pactuada (artigo 4º da
Lei 8.245/1991).
[13] Faculdade limitada a uma vez nos 24
meses anteriores à propositura do procedimento judicial (artigo 62,
parágrafo único, da Lei 8.245/1991).
[14] Por mais que o artigo 1.046,
parágrafo 2º, CPC/2015 admita que permanecem em vigor as disposições especiais
dos procedimentos regulados em outras leis, aplicando-o supletivamente,
percebe-se que a resposta não é tão simples o quanto parece; a Lei de Locação
(1991) determina a purgação da mora quando da citação, sem prever a
obrigatoriedade da designação da audiência inaugural. Restando claro que deve
haver uma análise crítica sobre a aplicação supletiva do CPC/2015 nestes casos.
[16] Não se pretende “reviver” o revogado
CPC/1973, entretanto, levar-se-á em conta o já mencionado artigo 1.046,
parágrafo 2º, do CPC/2015, e a lógica procedimental do artigo 62 da Lei
8.245/1991.
[17] Salienta-se que o prazo do contrato
indetermina-se quando: “findo o prazo estipulado, se o locatário permanecer no
imóvel por mais de trinta dias sem oposição do locador, presumir-se-á
prorrogada a locação nas condições ajustadas, mas sem prazo determinado”
(artigo 56, parágrafo único, da Lei 8.245/1991).
[18] Existem algumas individualidades sobre
as intenções de retomada de imóveis residenciais que não serão objeto de
exposição, mas que merecem a devida leitura (artigos 46 e 47, da
Lei 8.245/1991).
[20] Theodoro júnior, Humberto et
alli. Novo CPC. Fundamentos e
Sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
[21] Acrescente-se que, não havendo
prejuízo às partes, não há nulidade ante a não realização da audiência
inaugural (artigo 282, parágrafo 1º, CPC/2015). Pelo contrário, a sua
realização importará prejuízos sobretudo financeiros.
0 comentários:
Postar um comentário