Dia comum de exercício defensorial. Eis que a instituição é intimada do
indeferimento de tutela provisória de urgência pleiteada em ação revisional sob
a seguinte fundamentação:
(...) Em que pese a constatação da plausibilidade do direito invocado
consubstanciada na cobrança de taxa de juros muito acima da taxa média
divulgada pelo Banco Central para operações similares, há normativo processual
que determina a continuidade do pagamento das parcelas no tempo e modo
contratados em ações desta natureza. Assim sendo, indefiro o pedido de tutela
de urgência na forma requerida.(...)
Passei a refletir. Será mesmo que a redação trazida pelo novo CPC,
especialmente o artigo 330, parágrafos 2º e 3º teria fulminado a possibilidade
de deferimento de tutela de urgência em ações revisionais? Teria, então, o
legislador instituído limitador jurisdicional em seara revisional, tal qual o
fez em favor da Fazenda Pública (Lei 9494/97)?
Parece que não foi essa a pretensão legislativa. Antes, contudo, de
indicar as razões dessa conclusão, importa situar o leitor acerca do caso
concreto submetido à apreciação judicial.
Dona “Maria” (nome fictício), carente, percebia LOAS - Benefício
Assistencial de Prestação Continuada - em razão da deficiência, no valor de
R$937,00, dos quais R$ 543,46 (quinhentos e quarenta e três reais e quarenta e
seis reais) eram repassados à financeira, isso é, 58% da sua renda mensal como
pagamento mensal do empréstimo realizado.
A financeira justificava a legalidade do desconto porque teria celebrado
“empréstimo com desconto em conta corrente” e “não consignado”, o que, a seu
ver, permitira (ao arrepio da recentíssima súmula 603, STJ)[1], a retenção naquele patamar. Senão
bastasse, sob o manto da autonomia da vontade e da inexistência de limitador
legal ao sistema financeiro, aplicou juros remuneratórios no patamar de 22%a.m
(isso mesmo, ao mês!) quando a média de mercado para a operação permeava
2,09%a.m, alegações atestadas por laudo contábil a partir de indicadores
extraídos do Banco Central.
Diante disso, a assistida sucumbia com apenas R$ 393,60 mensais, a
despeito de já satisfeita a totalidade da obrigação (se considerado os juros
médios).
A plausibilidade jurídica do pedido, assim, parecia manifesta (tanto que
reconhecida expressamente na decisão). Todavia, a tutela de urgência foi
indeferida pelo óbice “normativo processual” .
Volto a indagar: Teria sido essa a intenção do legislador processual
civil? Penso que não.
A previsão legal de que o pagamento do incontroverso deva se dar no
tempo e no modo pactuados (artigo 330 parágrafo 3, CPC), por si só, não furta
do magistrado a possibilidade de realizar a ponderação a partir das
especificidades do caso concreto.
Em linhas gerais, a aplicação da lei deve considerar tanto a norma in
abstrato quanto às nuances da situação fática para, assim, trazer uma resposta
prudente, ponderada e justa.
Reconhecer a probabilidade do direito e indeferir a proteção judicial
sob o argumento de vedação em tese parece, com o devido respeito ao julgador,
ferir a premissa da autonomia do exercício da judicatura, conquista garantida e
fomentada a partir do neoconstitucionalismo.[2]
Noutro aspecto, a fixação legal de que a parcela incontroversa tenha de
ser paga “no tempo e modo contratados” não é novidade do novo CPC. Prova disso
é que o artigo 50 parágrafo 1º da Lei 10.931/2004[3] (Lei de Incorporação Imobiliária)
contém texto similar:
Artigo 50, parágrafo 1º O valor incontroverso deverá continuar sendo
pago no tempo e modo contratados.
Ocorre que tal norma foi precisa ao possibilitar nos seus parágrafos a
dispensa das parcelas em caso de relevante razão de direito e de risco de dano
irreparável.
Artigo 50. parágrafo 4o O juiz poderá dispensar o depósito de que trata
o parágrafo 2o em caso de relevante razão de direito e risco de dano
irreparável ao autor, por decisão fundamentada na qual serão detalhadas as
razões jurídicas e fáticas da ilegitimidade da cobrança no caso concreto.
A nosso ver, a textual dispensa prevista em lei especial elucida, em
verdade, princípio geral, qual seja: de que qualquer vedação in abstrato pode
ser judicialmente afastada a partir das especificidades do caso concreto em
qualquer modalidade contratual. É dizer, o juiz jamais poderá ter suprimida sua
capacidade de ponderação, sob pena de se retroceder à escola da exegese (1804 -
Código Napoleônico)[4]
Nessa ordem de ideais, o STF teve a oportunidade de reconhecer que até
mesmo a declaração de constitucionalidade da norma não importa pressuposto
lógico e irrestrito de aplicação do texto quando as especificidades apontarem
caminho diverso.
Uma dessas decisões foi tratada na ADC-4, onde o STF, a despeito de
reconhecer a constitucionalidade da vedação de liminares em face do poder
público, reconheceu que “a decisão proferida pela Corte na ADC 4-MC/DF, Rel. Min.
Sidney Sanches, não veda toda e qualquer antecipação de tutela contra a Fazenda
Pública”.[5]
O STF, inclusive, chegou a editar súmula quanto à possibilidade de ponderação
(SÚMULA 729 – “A decisão na Ação Direta de Constitucionalidade 4 não se aplica
à antecipação de tutela em causa de natureza previdenciária”)
Os Tribunais igualmente reconheceram que a vedação in abstrato pode ser
afastada a partir de valores ponderados no caso concreto, tais como a tutela de
saúde, medicamentos e outras demandas urgentes. Vejamos:
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO EPROCESSUAL
CIVIL. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. FAZENDA PÚBLICA. EXCEÇÃO ÀS HIPÓTESES DO ARTIGO
1º DA LEI 9.494/97. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA TUTELA ANTECIPADA CONTRA A
FAZENDA PÚBLICA. I- A antecipação de tutela em face da Fazenda Pública pode ser
concedida nas situações que não se encontrem inseridas nas hipóteses
impeditivas da Lei 9.494/97. Precedentes. II- Agravo Regimental a que se nega
provimento. (STJ - AgRg no Ag: 1185319 RJ 2009/0083415-0, Relator: Ministro
VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), Data de Julgamento:
25/10/2011, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/11/2011)
REEXAME OBRIGATÓRIO E APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER –
OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE E FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL –
PRELIMINARES REJEITADAS – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO PELO ESTADO – OBRIGAÇÃO
CONSTITUCIONAL – ARTIGO 196 DA CF – TUTELA ANTECIPADA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA
– LEI N. 9494 /97 – POSSIBILIDADE NO CASO CONCRETO – (...) O artigo 196 da
Constituição Federal prescreve que é dever de o Estado garantir o acesso
universal e igualitário das pessoas à saúde, estando este dever constitucional
acima de qualquer lei, portaria ou outro ato normativo, porquanto o que se visa
garantir é o direito primordial à vida.(..) TJ-MS - Apelação APL
08196798620138120001 MS 0819679-86.2013.8.12.0001 (TJ-MS) Data
de publicação: 10/03/2016
Parece-nos que o entendimento também é aplicável às ações revisionais a
fim de se evitar injustiças e danos quiçá irreversíveis.
Temos, assim, que o novo CPC não inovou ou impossibilitou o juízo
observar as nuances do caso concreto para, assim, permitir a concessão da
tutela provisória de urgência, inclusive em seara revisional, caso presentes a
plausibilidade jurídica do pedido e o risco ao resultado útil do processo.
[1] Súmula 603: É
vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos
e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda
que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por
margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui
regramento legal específico e admite a retenção de percentual.
[2] Fenômeno
advindo com a CF/88, que reafirmou o princípio da dignidade da pessoa humana, o
código civil passou a ser interpretado à luz da constituição, fenômeno
denominado constitucionalização do direito civil, razão pela qual a
interpretação literal da lei cada vez mais cede espaço tanto para a
interpretação sistemática como para a analogia, partindo do pressuposto de que
o contrato tem de cumprir com a sua função social.
[3] Lei de
incorporação imobiliária
[4] Empirismo
Exegético - A ciência jurídica (...)que a função específica do jurista era
ater-se com rigor absoluto ao texto legal e revelar seu sentido. (...) por isso
o estudo do direito deveria reduzir-se a mera exegese dos códigos. https://www.passeidireto.com/arquivo/6181687/empirismo-exegetico,
acesso em 28/02/2018.
[5]Rcl 8335 AgR, Relator Ministro
Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgamento em 19.8.2014, DJe de 29.8.2014)
0 comentários:
Postar um comentário