A Lei 13.105/15 — o novo Código de Processo Civil, em seu artigo 292,
que trata do valor da causa, estabelece em seu inciso V[i] que o valor da causa constará da
petição inicial ou da reconvenção e será na ação indenizatória,inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido. Assim, na ação
em que se pleiteia alguma indenização por danos morais, deve o postulante
estipular o valor da indenização que entende fazer jus, fazendo constar o montante dessa pretensão no valor a ser dado à
causa. Sobre referido artigo, alguns doutrinadores[ii] passaram a elogiar a inserção do
inciso V no novo CPC, uma vez que assim o legislador estaria dando um
golpe contra a chamada “indústria do dano moral.”[iii] [iv]
Sob esse viés sustentam, aqueles que elogiam (e defendem) a inserção do
mencionado inciso V, que dessa forma haverá uma limitação no número de ações
indenizatórias, considerando que, agora, os postulantes deverão especificar o quantum que pretendem receber a título de
indenização, implicando diretamente nas custas processuais, pagas no início do
processo, na forma do que disciplina os artigos 82 e 84 do novo CPC[v] e ainda a possibilidade de arcarem
com honorários sucumbenciais, caso a ação seja julgada improcedente, ou mesmo
tenha sido arbitrado um valor inferior ao pleiteado, segundo os critérios que o
magistrado entender mais adequados[vi].
Nesse diapasão, aquele que se sentir ofendido moralmente, para poder
socorrer-se do Judiciário, tem por obrigação mensurar qual o valor do dano
moral que pretende receber, arcando com as custas processuais e ficando à mercê
da interpretação do magistrado que, ao invés de ter que mensurar o valor dos
danos, terá apenas que definir se a indenização é devida e se o valor pleiteado
é exorbitante ou não. Caso haja condenação em um valor menor do que o indicado
pelo autor da ação, corre este o risco de, além das custas pagas antecipadamente,
ter ainda que arcar com honorários sucumbenciais.
Entendo, com os argumentos adiante expostos, que há flagrante
inconstitucionalidade no citado artigo 292, V, do novo CPC.
Em primeiro lugar devo lembrar de que a Constituição Federal de 1988
trouxe o direito à indenização por danos morais como um Direito Fundamental[vii], na forma do seu artigo 5, X[viii], e ao tratar-se como tal há a necessidade
de que haja uma proteção integral, não podendo o legislador ordinário, de forma
alguma, mitigar a sua aplicabilidade.
Não se pode esquecer que os Direitos Fundamentais correspondem aos
Direitos Humanos em nível interno[ix], e se estão positivados nesse grau é por
que se revestem de uma importância ímpar, sobrepondo-se inclusive sobre outros
direitos. Na verdade, os Direitos Fundamentais cumprem um papel fundamental na
própria “concretização do moderno Estado Democrático de Direito”[x].
O inciso V, em comento, ao meu olhar, dificulta e até mesmo impede que
as pessoas tenham a oportunidade de se socorrer do Judiciário quando entender
tiveram seus direitos da personalidade violados, o que fere o princípio
constitucional do acesso à justiça, que é também um Direito Fundamental,
insculpido no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, bem como
também atenta contra a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem e a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)[xi].
O argumento de que há o socorro dos benefícios da justiça gratuita aos
que não possam arcar com as custas ou mesmo honorários advocatícios é muito
frágil, mas deixo para rebater este argumento em outra oportunidade por
suscitar outras reflexões.
Mais uma observação que reputo oportuna, e sobre a qual não vi ninguém
enfrentar ainda o tema, é que a indenização por dano moral tem por objetivo não
só satisfazer a vítima, minimizando a dor ou o sofrimento desta, mas também tem
por objetivo desestimular o autor a praticar novamente o ato inquinado de
ilegal ou ilegítimo. Há mais, na fixação da indenização por danos morais deve
ser levada em consideração a capacidade econômica do agente causador do dano.
Nesse toar, há questões muito técnicas e complexas (vide as divergências de
julgados, inclusive nos próprios tribunais superiores[xii] [xiii]) que o cidadão não
está obrigado a conhecer.
Assim, quando se diz que o artigo 292, V do novo CPC, inibirá o
ajuizamento de ações temerárias, aventureiras, esquece-se que também inibirá o
ajuizamento de ações viáveis, sendo verdadeiro empecilho para o ajuizamento
dessas ações e, via de consequência, um estímulo para que aumente o desrespeito
em face aos direitos da personalidade. O inciso reveste-se, pois, de
inconstitucionalidade por ferir dois preceitos constitucionais, dois preceitos
que são também Direitos Fundamentais, o que é mais grave!
[i] Lei 13.105/15 - Novo Código de Processo Civil – NCPC - “Art. 292. O
valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será:
[ii] Ver, dentre outros, o artigo do prof. Doutor Luiz Dellore. Em
http://jota.uol.com.br/novo-cpc-e-o-pedido-de-indenizacao-fim-da-industria-do-dano-moral.
Acesso em 08.07.16.
[iii] Segundo o “Justiça em Números”, Relatório do CNJ sobre os números
de ações em 2014, tem-se que foram ajuizadas 2.039.288 (4,01%) ações
decorrentes das relações de consumo (Direito do Consumidor - Responsabilidade
do Fornecedor/Indenização por Dano Moral), 1.258.733
(2,48%) ações decorrentes de responsabilidade civil (Direito civil -
Responsabilidade Civil/Indenização por Dano Moral). O mencionado
Relatório aponta, assim, que as ações de Indenização por Dano Moral constam
entre os dois principais assuntos dos juizados especiais, no âmbito do direito
do consumidor e do direito civil, correspondendo a 20,41% das ações. Acesso em:
http://s.conjur.com.br/dl/relatorio-justica-numeros-2015-final-web.pdf
[iv] Já disse em outra oportunidade que quando se sedimentou no STJ a
possibilidade de fixação pelos magistrados de indenizações por danos morais,
começou-se a se fixar indenizações mais que vultosas, desarrazoadas, o que fez
surgir a indústria dos danos morais e o número de ações sobre o tema terminou
por crescer vertiginosamente. Era o enriquecimento sem causa superando o
interesse social. De repente, a sociedade, a imprensa e a própria doutrina
passaram a demonstrar o quão absurdo eram aqueles valores, carecendo de
parâmetros objetivos e claros para que se pudesse quantificar esse tipo de
dano. O que aconteceu, então? Passou-se de um extremo a outro. As indenizações
se tornaram aviltantes, inexpressivas, e as indenizações por ofensa aos
direitos da personalidade passaram a ter valores irrisórios, o que terminou por
incentivar o cometimento de danos morais de toda ordem, pois os causadores não
eram apenados adequadamente. Por que as operadoras de telefonia celular, planos
de saúde, bancos e diversos outros setores da economia continuam a tratar os
clientes do modo como tratam? É porque compensa, pois o Judiciário, nas
demandas que lhes são afeitas, termina por desestimulá-los a uma melhor prestação
de serviços, quando deveria ser o oposto, ou seja, deveriam ser inibidos ao
cometimento de nova conduta que atentasse contra o interesse da sociedade.
[v] Lei 13.105/15 - Novo Código de Processo Civil – NCPC - Art. 82.
Salvo as disposições concernentes à gratuidade da justiça, incumbe às
partes prover as despesas dos atos que realizarem ou requererem no processo,
antecipando-lhes o pagamento, desde o início até a sentença final ou, na
execução, até a plena satisfação do direito reconhecido no título.
Art. 84. As despesas abrangem as custas dos atos do processo, a
indenização de viagem, a remuneração do assistente técnico e a diária de
testemunha.
[vi] Não está em debate, no momento, os critérios de fixação dos danos
morais pelo juiz, os quais vêm sendo objeto de discussão em diversos estudos,
inclusive nos próprios Tribunais. Sugiro, como leitura sobre o tema: XXXX.
[vii] A expressão “Direitos Fundamentais” surgiu em 1770, segundo Perez
Nuno, na França, por ocasião do movimento político e cultural que conduziu à
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Cf. PÉREZ LUNO, Antônio
Henrique. Derechos Humanos, Estado de
Direito e Constituição. 10ª ed., Tecnos. Madri, 2010, p. 32.
[viii] Art. 5º - (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação;
[ix] PÉREZ LUNO aponta parte da doutrina defende que os direitos
fundamentais seriam aqueles princípios que resumem a concepção do mundo e que
informam a ideologia politica de cada ordenamento jurídico. Aduz ainda que a
concepção de que os direitos fundamentais não necessariamente decorrem de uma
positivação constitucional, considerando-os como a resultante das exigências da
filosofia dos direitos humanos com su plasmación normativa
em el derecho positivo. “En todo caso, se puede advertir uma certa tendência,
no absoluta como lo prueba el enunciado de la mencionada Convención Europea, a
reservar la denominación “derechos fundamentales” para designar los derechos
humanos positivados a nível interno, em tanto que la fórmula “derechos humanos”
es la más usual em el plano de las declaraciones y convenciones
internacionales”. Ob. Cit. p.33.
[x] Ver artigo de Gilmar Mendes, Proteção
judicial efetiva dos direitos fundamentais. In Direitos
Fundamentais e Estado Constitucional – Estudos em homenagem a J. J.
Canotilho. Revista dos Tribunais. pp. 372 e ss.
[xi] CF/88 - art. 5.º, XXXV – “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”;
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela
Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU), em 10.12.1948, tem disposição
expressa no sentido de que: “VIII. Todo homem tem direito a receber, dos
tribunais nacionais competentes, remédio efetivo para os atos que violem os
direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela
lei”.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa
Rica), de 22.11.1969, estabelece no art. 8.1 que: “Toda pessoa tem direito a
ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz
ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente
por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para
que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista,
fiscal ou de qualquer outra natureza.”
[xii] As divergências são tantas que o STJ editou a Súmula n. 420 - Incabível,
em embargos de divergência, discutir o valor de indenização por danos morais.
Ver ainda:
https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2014_40_capSumula420.pdf
[xiii] DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. RAZOABILIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO NO
STJ. SÚMULA 7. - Em recurso especial somente é possível revisar a indenização
por danos morais quando o valor fixado nas instâncias locais for exageradamente
alto, ou baixo, a ponto de maltratar o Art. 159 do Código Beviláqua. Fora
desses casos, incide a Súmula 7, a impedir o conhecimento do recurso. - A
indenização deve ter conteúdo didático, de modo a coibir reincidência do
causador do dano sem enriquecer injustamente a vítima. (...) (STJ - REsp:
633105 MG 2004/0005249-0, Relator: Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Data de
Julgamento: 25/09/2006, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ
27.11.2006 p. 275). (Grifei)
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