O STJ analisa
processo que trata da penhora de um imóvel considerado de luxo, única
residência da família, para pagamento de credor. O relator, ministro Luis Felipe Salomão, propôs uma
releitura da jurisprudência acerca da questão.
Até o momento,
não há precedentes na Corte; ao contrário, a regra tem sido pela literalidade
da lei
8.009/90, que prevê a impenhorabilidade do bem de família. “Nós
vamos no automático”, lembrou Salomão.
Em voto inédito, S. Exa. sugere que, em situações específicas, a partir
da ponderação do juiz, ele poderá determinar a penhora, considerando que o
percentual a ser retirado para pagar o credor não impede que a sobra leve à
aquisição de outro imóvel de padrão semelhante. O relator ressaltou que não se
trata de uma guinada na jurisprudência, mas uma adequação à realidade
contemporânea.
No caso, tanto sentença quanto acórdão não acolheram o pedido da
Associação credora para penhora do bem, um apartamento que, à época da
propositura da ação, foi avaliado entre R$ 500 mil e R$ 1,2 mi.
Nova interpretação
“É chegado o momento de interpretação mais
atualizada e consentânea com a sociedade brasileira.” Assim o
ministro Salomão começou a leitura do voto na tarde desta quinta-feira, 1º/9,
na 4ª turma da Corte.
Fazendo um
retrospecto da lei 8.009 e toda a legislação de regência da matéria, o relator
ressaltou que no CPC/73,
em seu artigo 649, ao prever a impenhorabilidade de alguns bens, fez clara
opção à teoria do patrimônio mínimo (princípio do ministro do STF Edson Fachin
- veja entrevista sobre
o tema).
Salomão lembrou o
fato do legislador não ter conseguido destacar da previsão casos de elevado
valor, que sofreu veto presidencial. No veto, lembrou Salomão, a presidência
disse que o debate sobre o dispositivo era interessante e razoável. “Apesar do reconhecimento da razoabilidade, sob o
fundamento da tradição, retirou-se o parágrafo para manter a impenhorabilidade
do bem de família.”
Também no projeto do novo CPC foi apresentada emenda com proposta muito
semelhante (nº 358), que limitava a impenhorabilidade a imóveis de até mil
salários mínimos.
“Nas palavras de Fred Didier, tecnicamente não há
impedimentos, o problema é político. De fato, a proteção dispensada ao devedor
por meio da impenhorabilidade do bem de família, orienta-se pela garantia do
mínimo existencial, de patrimônio suficiente para vida digna, e não para o
excesso.”
Dignidade do credor
Feitas tais ponderações, Salomão afirmou que, numa reflexão avançada da
dignidade humana, seria impossível não se preocupar também com a dignidade do
credor.
“Levando em conta os princípios constitucionais,
para proteção do devedor, outros podem ser destacados, como a garantia à ordem
jurídica justa e efetiva. É fácil perceber que a negativa de penhora de imóvel
de alto valor com base na lei que prevê a impenhorabilidade de bem de família
ofende o princípio da razoabilidade.”
No entender do ministro, o patrimônio que excede o necessário à vida com
dignidade, em detrimento do direito do credor, frustra o credor diante do
inadimplemento, muitas vezes comprometido em sua dignidade pela falta de
pagamento.
“O princípio da isonomia se vê afrontado por
situação que privilegia determinado sujeito sem a corresponde razão que
justifica esse privilégio. A questão exige muito mais que a simples
interpretação literal da norma legal.”
De acordo com o relator, a proposta do voto não pretende a mudança
irresponsável do ordenamento, mas a reafirmação dos vetores e a convivência
harmônica dos diferentes princípios.
“A proposta é de afastamento da absoluta
impenhorabilidade, e da possibilidade de ser afastada diante do caso concreto e
da ponderação dos direitos em jogo. Não a imposição de nova sistemática.”
E, seguindo tal raciocínio, considerando-se que o valor do crédito
representaria cerca de um quinto do valor do imóvel, Salomão considerou que na
hipótese é certo que o padrão de vida do devedor muito provavelmente sequer
será alterado, não se sustentando assim a impenhorabilidade do imóvel.
“Se o objetivo da lei é garantir a dignidade humana
e direito à moradia, acaso deferida, os bens jurídicos manterão incólumes. Ela
continua morando em local com dignidade, superior à média.”
Dessa forma, votou pelo provimento ao recurso para autorizar a penhora,
resguardado o percentual do imóvel, para satisfação da dívida, garantido o
restante ao devedor.
Preocupações
Primeiro a se
manifestar após o voto do relator, o ministroRaul Araújo sustentou que a legislação já traz em si todas as exceções que
entendeu razoáveis à regra da impenhorabilidade do bem de família.
“O fato de um imóvel ser de maior valor muitas vezes
abriga família de empresário malsucedido, que arriscou seus capitais, não
logrou êxito, num país de economia tão instável quanto o nosso, e o que restou
foi bem de valor significativo. É uma pecha e uma pena que fica para sempre na
sua vida.”
Ponderou Raul que ao relativizar a aplicação da lei de impenhorabilidade
do bem de família, que condiz com a legislação posta, “vamos estar lançando
enormes inseguranças sobre as famílias brasileiras”. Preocupa o ministro o fato
de que o devedor pode ter outros credores e, a cada vez, um deles levaria uma
parte do imóvel, reduzindo o patrimônio consideravelmente.
“Penso que estaremos dando um passo muito perigoso
em direção ao abismo. Estaremos incentivando inúmeros demandas em torno da
impenhorabilidade do bem de família se tivermos caso a caso analisando o que é
um bem suntuoso.”
Após, falou o ministro Antonio Carlos Ferreira, que também levantou
preocupações, inclusive com relação a dificuldades na aplicação do entendimento
do ministro Salomão.
Por sua vez, a ministra Isabel Gallotti avaliou que uma eventual
mitigação por parte da Corte da impenhorabilidade teria que ter a fixação, “não
do valor da dívida em execução, e sim o valor mínimo necessário à garantia da
subsistência da pessoa.”
“Por exemplo, num imóvel que valesse 1.700 salários,
mil salários reverteriam ao devedor com cláusula de impenhorabilidade”.
O ministro Marco Buzzi pediu
vista dos autos, prometendo que ponderaria sobre as preocupações dos ministros
Raul e Antonio Carlos, bem como analisaria a proposta da ministra Gallotti.
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