Decretada a intervenção federal, surgiram “n” controvérsias. Já me
pronunciei no primeiro dia (ver aqui). Chamei a atenção, no
calor da publicação do decreto, para dois aspectos: um, que a intervenção
federal acaba com a reforma da previdência, uma vez que não pode ser
suspensa e depois, retomada. Uma PEC é um todo. Não é só votação. Parece óbvio
isso. Outro ponto — que agora aprofundo — é o de que a intervenção federal
não pode suspender direitos e garantias. Não é estado de sítio. Portanto,
parece arrematado absurdo o Ministério da Defesa pretender a emissão de mandados
de busca coletivos. Quem teria dado essa “opinião ilegal” ao ministro? Já
escrevi sobre isso: Por que, contra a lei, juíza acha que pode
autorizar revista coletiva? (aqui) Há notícias de que
desistiram da ideia. Mas, nunca se sabe...
Sigo. A intervenção federal não é um mal em si. É um remédio
amargo que está na Constituição. Mas não se pode transformar uma intervenção
federal em uma intervenção militar ou militarizada. Não parece que o uso
pirotécnico de uma intervenção federal possa dar conta de um problema que
é afeto à polícia e, por consequência, ao Ministério Público e à magistratura
do Estado.
Assim, um juízo jurídico exige que os direitos e
garantias sejam respeitados, e que o ônus político disso deva
ser suportado por quem tem o poder de intervir. Alguns problemas jurídicos são
evidentes, como a questão da competência para julgamento dos crimes. O decreto
intervencionista parece ter legislado sobre competência em matéria processual.
Por que a intervenção tiraria a competência da Justiça estadual, passando-a à
Justiça Militar? É uma intervenção ou uma tomada do poder por um interventor
militar? Se não se pode fazer emenda constitucional em tempos de intervenção,
não parece que se possa suspender o Código de Processo Penal.
Outra questão: se a segurança pública do Estado está toda assujeitada ao
general, o Ministério Público perderá o controle externo sobre a polícia civil?
Isso não é suspender a própria Constituição Federal?
Outro ponto que fere a Constituição é a falta de detalhamento no
Decreto. Afinal, como vamos controlar abusos e questionar os limites da
intervenção federal, se o Decreto interventivo — de duas singelas folhinhas
— não oferece os detalhes e os próprios limites?
O ônus de ser uma intervenção federal parcial é do interventor.
Nesse sentido, o fato de ser parcial não pode acarretar uma invasão nas esferas
de competências e atribuições do Ministério Público e do Poder Judiciário do
Estado do Rio de Janeiro. Ou federalizaram a segurança pública por decreto? São
questões que terão que ser respondidas a partir de agora que o Parlamento
aprovou a intervenção federal. Ou seja, quem pariu Mateus que o embale.
Democratas, temos de ficar atentos e denunciar qualquer desmando, e
inclusive agir, utilizando os remédios constitucionais.[1]
Se o governo Temer fez uma opção tipo “URSS invadiu o Afeganistão e se afundou”
ou “os EUA invadiu o Iraque e cavou o seu buraco”, é problema dele. Se ele
arrasta o Exército para dentro do problema, é também um ônus político que o
presidente da República e o grupo que o apoia terá que suportar. Mas o ônus
político não tem o condão de obnubilar as consequências jurídicas, facilmente
perceptíveis.
Lamentavelmente, o Parlamento, com seu amplo apoio, parece ter feito da
intervenção um fato consumado, sufragando o requisito do “grave comprometimento
da ordem pública”. Parece que os parlamentares não se deram conta de que o Rio
de Janeiro, já sob o decreto interventivo, fez o desfile das campeãs do
carnaval no dia seguinte, além de assistir a milhares de pessoas “encerrando”
os festejos de momo sem maiores entraves. Ora, um Estado que está sob
intervenção em face do “grave comprometimento da ordem pública” não estaria em
total desordem? Ordem pública é um conceito jurídico. Ele não é fruto de
escolha ou de puro discricionarismo. Não exsurge de um “ato de vontade”. Se
alguém compromete a ordem pública — que, insisto, não é “qualquer coisa” — ,
pode ser preso. Parece evidente que o conceito de “grave comprometimento da
ordem pública” foi sobreinterpretado. O decreto não justificou a ocorrência
desse requisito constitucional.
Na ConJur do dia 20.2, leio a reportagem segundo a
qual para o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, “o presidente
da República tem o poder para determinar intervenção federal de acordo com seu
exclusivo juízo político, a partir de sua própria avaliação, não cabendo ao
Judiciário avaliar a necessidade, utilidade ou conveniência do ato". Essa
é a base da decisão do ministro Celso de Mello ao negar o pedido de liminarfeito pelo
deputado federal Ivan Valente (Psol-SP) para suspender a análise pelo Congresso
do decreto que determinou a intervenção federal no Rio de Janeiro.” Não sei
devia — ou poderia — o STF suspender a própria votação. Mas o argumento de que
o ato de intervir é fruto de exclusivo juízo político é preocupante.
Essa reportagem da ConJur e a posição do ministro Celso
de Mello me fez lembrar, mais uma vez, o famoso caso sobre a intervenção do
Reich na Prússia, de 1932, questionada perante o Tribunal do Reich. O
presidente Hindenburg havia decretado a intervenção. De forma discricionária. E
é preciso, antes de tudo, guardar as devidas proporções, dadas as diferenças
entre a Constituição alemã de 1919 e a Constituição brasileira de 1988, já que
a Constituição brasileira, por razões históricas que deveriam ser óbvias, é
muito mais “analítica” do que a de Weimar ao tratar do assunto. Não vou entrar
em maiores detalhes sobre o caso da Prússia.[2]
Apenas para lembrar o mínimo: Do lado do Reich, estava Carl Schmitt e
sua interpretação do artigo 48 da Constituição de Weimar, para quem o
presidente seria o “soberano” por deter o poder de decretar o “estado de
exceção”, sendo, portanto, um juízo, sobretudo, político e não passível de
controle por tribunais, na medida, inclusive, de que é a própria Constituição
que prevê a possibilidade de intervenção federal (eis o perigo de se dizer, no
Brasil, que a intervenção depende do poder discricionário do Presidente).
Já do lado da Prússia estava Hermann Heller, para quem as competências
do presidente, previstas no artigo 48, embora envolvessem questões políticas e
jurídicas, eram passíveis de controle judicial, de acordo com os
princípios da democracia social e do federalismo, sendo, portanto, uma
intervenção federal sujeita ao controle da proporcionalidade.
Em outras palavras, é Heller[3]
quem defende, de modo correto em face do caráter normativo da
Constituição, que é preciso analisar juridicamente se uma intervenção
federal e suas ações se justificam, inclusive se não haveria medida menos
gravosa que proteja os princípios da democracia e do federalismo, estruturantes
da Constituição. Ponto para Heller. O resto da história, sabemos: o
reconhecimento, pelo tribunal, da constitucionalidade da intervenção e sua
recusa em analisar que medidas o Reich poderia ou não, em princípio, tomar com
base no artigo 48, o que irá contribuir historicamente para os eventos de
1933... Sim, Heller perdeu. O resto todos sabemos.
Com base na Constituição brasileira, penso que cabe ainda mais seguir a
posição de Heller, se quisermos levar a Constituição a sério como norma. E,
assim, de todo modo, penso que o Presidente deve saber que, se tem a parte que
o autoriza intervir — com todos os problemas conceituais já declinados — tem
também a outra parte, bem maior, que diz o que ele não pode fazer. Um deles é
achar que intervenção é estado de sítio ou de exceção. Se assim pensar, corre o
risco até de sofrer impeachment.
E quem estará com um enorme pepino para descascar é o Poder Judiciário (lato
sensu), que deve controlar, difusa ou concentradamente, a
constitucionalidade das leis da República. E o Ministério Público, que é o
guardião da ordem jurídica, a partir da nota técnica emitida (ler aqui). O que farão essas
instituições? A ver, pois.
E lembremos sempre o debate entre Schmitt e Heller. Para Heller, o
Judiciário deveria controlar os atos do Reich.
1 Nessa linha, o jurista Juarez
Tavares anuncia o site www.defezazap.org.bre o número do WhatsApp para
denúncias: 21-99670-1400.
2 Sobre isso ver o livro de
Leticia Vita, “Prusia contra el Reich ante el Tribunal Estatal”, publicado pela
Universidad Externado de Colombia, em 2015.
3 Ver o artigo “Ist das Reich
verfassungsmäßig vorgegangen?” (O Reich procedeu de forma constitucional?
Publicado no Frankfurter Zeitung,, e que faz parte das obras completas de
Heller.
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