Com frequência, nomes de mutuários rurais (pessoas físicas ou jurídicas)
são encontrados nos cadastros de restrição de crédito em razão de apontamentos
lançados por agentes financeiros em função de operações de crédito
rural, cujos pagamentos não foram tempestivamente honrados pelo devedor.
Desenvolvida sob riscos permanentes, a atividade primária, e não
propriamente o produtor rural, é pródiga em gerar impontualidade nos pagamentos
dos financiamentos bancários, o que a fez merecer, por sua exposição a riscos
diversos, o título nada notável de “empresa a céu aberto”. Os problemas são
vários e conhecidos de todos: clima, política de governo, mercado etc.,
além de outros fatores imprevisíveis, como operações da Polícia Federal (carne
fraca) ou a greve dos caminheiros de 2018, apenas para ficar nos exemplos mais
recentes.
A despeito de ser uma atividade frágil, literalmente sujeita a chuvas e
trovoadas, a Constituição diz que o Estado deve fomentar a produção
agropecuária, já que está na esfera de sua incumbência organizar o
abastecimento alimentar[1].
A competência do Estado em fomentar a produção agropecuária e organizar
o abastecimento alimentar guarda íntima relação com o disposto no
artigo 6º[2],
da Constituição, de onde sobressai ser a alimentação um direito social. Aliás,
se o fato de a alimentação ser um direito social não bastasse para a
agricultura merecer atenção especial do Estado, o que não dizer quando a Lei
Agrícola (Lei 8171/91) reconhece que o abastecimento alimentar adequado é
condição para assegurar a ordem pública e a paz social[3].
Para quem consegue ler e entender o alcance desse preceito da lei especial,
fica fácil compreender a relevância da agricultura.
Se é assim tão de perto responsável por guardar o ambiente social dos
desajustes que a fome produz, pois não há ordem quando a escassez de alimentos
se avizinha, não é menos certo que, no âmbito de sua participação na formação
Produto Interno Bruto (PIB), a agricultura sobressai como responsável pela
geração de riqueza, emprego e renda sem concorrente à altura.
Ainda se poderia dizer em seu favor que o potencial de assegurar a
soberania nacional é notável, pois um Estado que se louva num abastecimento
alimentar seguro e ininterrupto tem voz audível em suas tratativas
internacionais, o que já mereceu nossa manifestação noutro momento[4].
Por essas e outras razões, proteger a agricultura parece a atitude mais
lúcida de um Estado bem administrado.
Como proteger a atividade agrícola implica, por
óbvio, proteger o produtor rural, já que este é a mola propulsora
daquela, e tudo que se oponha ao pleno exercido de sua capacidade de empreender
deve de pronto ser afastado.
Não foge ao conhecimento comum que, presentemente, uma das práticas mais
nefastas ao produtor rural tem sido a inscrição do seu nome junto aos cadastros
de restrição de crédito, o que lhe impede de retirar novos financiamentos de
safra.
A partir do momento que o registro acontece, as tratativas negociais do
negativado ficam seriamente congestionadas, já que instituições financeiras,
cooperativas e empresas do agronegócio resistem em negociar com aqueles que
carregam tal mácula.
Sem poder contratar novos créditos, menos ainda adquirir insumos com
pagamento a prazo, o produtor se vê obrigado a reduzir a área de plantio, a
empregar menor potencial tecnológico na atividade, quando não deixa ociosa
a terra, já que de outra forma não tem como fazer frente aos elevados custos de
produção.
Como bem necessário e indispensável à vida, à ordem pública e à paz
social, ao desenvolvimento econômico e à própria soberania, a produção de
alimento merece estar presente na órbita das preocupações mais significativas
do Estado, visando tomar medidas profiláticas que desobstruam os caminhos que
levam ao campo, inclusive aqueles de ordem meramente comercial.
É neste sentido que se deve ponderar sobre os efeitos da negativação do
nome do produtor rural nos cadastros em questão.
Constitucionalmente falando, um dos instrumentos de política
agrícola de que o Estado se vale para induzir o campo a produzir é o
crédito (artigo 187, I/CF)[5],
que, nos termos da Lei Agrícola, se denomina crédito rural (inciso
XII, do artigo 4º, da Lei 8171/91[6]).
A despeito de ser utilizado pelo particular, o crédito rural tem como
objetivo maior o interesse social, pois o que está em jogo na sua aplicação é o
bem-estar do povo, conforme proclamado no artigo 1º, da Lei 4.829/65[7] que
o institucionalizou.
Como o crédito chega ao produtor rural somente através das instituições
financeiras (artigo 48, Lei 8.171/91)[8],
é justamente por meio desses mesmos agentes que são postos entraves para tomada
de novos recursos pelo produtor, o que acontece quando apontam seus nomes nos
cadastros de restrição de crédito, em face de inadimplemento ocorrido em
operações similares.
Assim, quem deveria emprestar é o mesmo que gera dificuldade
para emprestar.
Como interessado direto no sucesso da atividade rural, o Estado deve ser
vigilante para coibir todo tipo de conduta que milite contra o sucesso da
atividade primária, caso contrário, sentirá ele próprio o preço de de tornar
relapso nessa conduta.
A assistência creditícia aos produtores rurais ultimamente vem sendo
prejudicada seriamente, e isso se deve não porque os recursos são escassos, nem
porque os possíveis tomadores não tenham garantias reais e fidejussórias para
oferecer ao financiador, mas porque seus nomes estão negativados pela inscrição
nos cadastros de restrição de crédito.
Como o objetivo da inscrição não é outro senão levar o inscrito a um
estado de desespero, coagindo-o por todos os caminhos a emprestar solução à
dívida não paga, esse mecanismo de opressão tem ocasionado resultados perversos
para o setor.
A referida negativação, um instrumento de mera tortura comercial, não
realiza o direito do credor, pois em si mesma nada pode contra o patrimônio do
devedor, mas somente contra sua idoneidade cadastral.
Não se pode desmerecer o fato de que a teor do contido nos
artigos 4º[9] e
14[10] da
Lei 4829/65, diploma legal que institucionalizou o crédito rural no país, toda
disciplina do crédito rural está na competência exclusiva do Conselho Monetário
Nacional, o que impõe aos agentes financeiros observar a normatização da
mencionada autoridade na condução dos financiamentos rurais, conforme alhures
registramos[11].
Sendo assim, uma das disciplinas estabelecidas pelo mencionado conselho
para os mutuantes rurais é que, havendo frustração de safra, problemas de
mercado ou qualquer outra situação adversa que dificulte o cumprimento do
mútuo, a reprogramação do calendário de pagamento deverá ser imediatamente
restabelecida para proteção do mutuário (Manual de Crédito Rural 2.6.9)[12].
Ora, se a própria autoridade disciplinadora do crédito rural impõe ao
mutuante rural estabelecer um novo cronograma de pagamento do
financiamento rural que teve seu descumprimento motivado pelas causas
que enumera, não socorre ao financiador realizar a inscrição do devedor
inadimplente nos referidos cadastros quando o próprio inadimplemento justifica
o estabelecimento de um novo calendário de pagamento.
A negativação, no caso, consiste numa injusta e indevida coação ao
devedor, visto que, por direito decorrente da referida norma — MCR 2.6.9 —, seu
inadimplemento é, em certo sentido, excusável, já que, em regra, no
financiamento rural o princípio é que a atividade financiada seja capaz de
cumprir a obrigação.
Ao atingir o nome comercial do devedor, a negativação, a seguir, atinge
seu patrimônio, pois os transtornos que trazem às suas relações comerciais
prejudicam o desenvolvimento de sua atividade laborativa.
Uma coação dessa natureza, exercida contra quem desempenha uma atividade
de inegável interesse social, só se justifica contra aquele produtor
irresponsável e inconsequente, que se utiliza do crédito rural contra a
filosofia que justificou sua institucionalização.
Desta forma, não deve ser considerado para fins de negativação do nome
do mutuário rural nos cadastros de restrição de crédito seu inadimplemento
involuntário ou não culposo, sobretudo quando se está presente algum dos
requisitos do MCR 2.6.9 ou quando a dívida possua garantia suficiente para seu
adimplemento em momento posterior, como a garantia hipotecária.
Afinal, se a dívida possui garantia suficiente e idônea e se a lei
permite a reprogramação do cronograma de pagamento para os casos de
incapacidade de pagamento em consequência de dificuldade de comercialização dos
produtos, frustração de safras, por fatores adversos ou eventuais ocorrências
prejudiciais ao desenvolvimento das explorações, a conclusão lógica é que o
inadimplemento do produtor rural possui resguardo constitucional.
No plano dos preceitos constitucionais, as razões jurídicas que estendem
proteção ao processo produtivo primário e, de consequência, ao produtor
rural podem ser vistos nos dispositivos que apontam para a importância da
produção de alimentos para o país, a saber: 1ª) a alimentação é um direito
social que o Estado não pode se furtar a responsabilidade de garanti-lo
indistintamente a todos (artigo 6º/CF); 2º) a possibilidade de assegurar
alimentação a todos depende de um abastecimento alimentar bem organizado pelo
Estado (artigo 23, VIII, 2 parte/CF); 3º) para organizar o abastecimento
alimentar, compete ao Estado fomentar a produção agropecuária (artigo 23,
VIII, 1ª parte/CF); 4º) um dos instrumentos de política agrícola utilizados
pelo Estado para apoiar o setor produtivo primário é o crédito (artigo 187,
I/CF).
Relativamente aos preceitos infraconstitucionais, notadamente no
ambiente da Lei Agrícola, vale destacar: 1º) o adequado abastecimento
alimentar é condição básica para garantir a tranquilidade social, a ordem
pública e o processo de desenvolvimento econômico-social (artigo 2º, IV);
2º) o crédito rural é um dos instrumentos de política agrícola (artigo 4º,
XI); 3º) o crédito rural visa estimular os investimentos rurais para produção e
favorecer o custeio oportuno e adequado (artigo 48, incisos I e II);
e 4º) o crédito rural terá como beneficiários produtores rurais
(artigo 49).
No tocante à Lei 4.829/65, diploma legal que institucionalizou o crédito
rural no país, o caráter social do crédito rural, o qual deve ser aplicado
visando o bem-estar do povo (artigo 1º), e a competência do Conselho
Monetário Nacional para estabelecer toda sua disciplina, inclusive a de
proteger o tomador dos recursos em momentos especiais, devem também ser levados
em conta.
Em suma, aquilo que é essencial (a produção de alimentos),
fomentado por um crédito especial (crédito rural), não pode ser tratado
como coisa comum.