A ideia de uma etapa prévia de investigação enquanto mecanismo racional
para a apuração de certa notícia-crime, a fim de justificar a deflagração (ou
não) de um processo penal contra alguém[1],
surge como o maior fundamento democrático desta fase persecutória,
especialmente sob um viés redutor de danos (ou dores[2])
no sistema de Justiça criminal.
Nesse sentido, tem-se que a base (jurídica) de legitimação da
investigação preliminar se assenta na ideia de filtro da justa causa, “tendo em
vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status
dignitatis do acusado”[3].
Logo, a formulação válida de uma acusação criminal “deve ter por suporte uma
necessária base empírica”, a fim de que “não se transforme em instrumento de
injusta persecução estatal”[4].
Não é diferente a lição de Badaró: “Em razão do caráter infamante do
processo penal em si, em que o simples fato de estar sendo processado já
significa uma grave ‘pena’ imposta ao indivíduo, não é possível admitir
denúncias absolutamente temerárias, desconectadas dos elementos concretos de
investigação que tenham sido colhidos na fase pré-processual”[5].
Indispensável, portanto, ao exercício regular da ação processual penal que se
extraia da investigação preliminar “elementos sérios, idôneos, a mostrar que
houve uma infração penal, e indícios, mais ou menos razoáveis, de que o seu
autor foi a pessoa apontada” na inicial acusatória[6].
Aqui reside o potencial contramajoritário da investigação preliminar. A
sua função evitadora de sofrimento desnecessário em relação a um processo penal
carregado de signos sociais negativos[7].
Aliás, acusação criminal, impregnada de simbolismos, que produz efeitos
indeléveis na vida do imputado mesmo quando o processo criminal resulte em
definitiva sentença absolutória[8].
Nesse viés que a instrução preliminar deve ser tida como “indispensável
à justiça penal”[9],
forte na garantia da inocência contra acusações infundadas[10];
verdadeiro mecanismo de contenção processual penal[11].
Um ideal, contudo, que só ganha sentido concreto em um modelo
persecutório criminal que não esteja comprometido com o atendimento das expectativas
gerais, ou melhor, do agrado à maioria de ocasião. A desgraça não raras vezes
inicia-se justamente aqui: quando se pretende dar respostas à sociedade pelo
exercício do sistema criminal.
O processo penal, ao contrário, deveria “se constituir como um
verdadeiro ‘limite democrático’”[12],
uma marcha contrária ao clamor das multidões por castigos imediatos e
exemplares. É o seu viés negativo ou de resistência que se espera em um modelo
estatal (democrático) de direito.
Com razão, afirma Rui Cunha Martins que o sistema processual apenas
“será um verdadeiro operador de mudança enquanto conseguir uma faceta tão
impopular quanto imprescindível: ser um defraudador de expectativas”[13].
Ocorre que a nossa gênese autoritária, ainda pulsante com muita força no
campo jurídico-penal, insiste na mera instrumentalização do poder punitivo, em
vez de sua contenção, apesar de todas as evidências concretas de ineficácia dos
objetivos declarados do sistema penal e dos números alarmantes de expansão dos
processos de criminalização.
Por óbvio, nesse contexto dominado por pretensões e desejos que vêm de
fora[14],
tendo como afeto predominante (e sempre útil) o medo[15],
qualquer potencial democrático de resistência fica absolutamente esvaziado. É o
que se vê, sem qualquer tipo de exagero, suceder com a persecução criminal
brasileira e, por via reflexa, com a própria investigação criminal.
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