Em 20 dezembro de 2018 foi promulgada a Lei 13.777, que regulamenta a
multipropriedade imobiliária, dando nova redação ao artigo 1.358 do Código
Civil e aos artigos 176 e 178 da Lei 6.015/73, a Lei de Registros Públicos. O
mercado imobiliário finalmente ganha esse atrativo produto para novos
investimentos no segmento dos imóveis para férias.
Trata-se do fracionamento no tempo da titularidade dominical. Dividem-se
em frações semanais os imóveis oferecidos aos multiproprietários, que terão,
assim, sua casa de campo ou de praia em determinado período do ano. A recente
lei brasileira, acertadamente, regulou a multipropriedade como unidade
autônoma, delimitada no tempo e no espaço, inserida no regime de condomínio
especial. O legislador trouxe a segurança que faltava ao setor, permitindo
que os investimentos se proliferem, como em diversos outros países, onde
obtiveram êxito extraordinário.
De fato, essa nova forma de utilização de bens, nascida na França em
1967, foi difundida amplamente na Europa e nos Estados Unidos pelas mãos
de empresários, que se anteciparam aos legisladores, como ocorreu com os
grandes condomínios urbanos e os shopping centers. Nos países europeus e nos
Estados Unidos, aliás, o sistema se expandiu para o mercado de bens móveis,
sendo praticado o time sharing sobre aviões, helicópteros e
barcos, por exemplo.
Com a divisão do uso de imóveis em temporadas, usualmente semanais,
numerosos proprietários utilizam, alternadamente, cada qual a seu turno, o
mesmo local. Dessa forma, franqueou-se o mercado a novas camadas sociais, que
de outra forma não teriam acesso à segunda casa. Famílias que pretendiam
adquirir a casa de campo ou de praia apenas para o período de férias
anuais satisfazem sua aspiração a preço relativamente modesto. Reduzem-se,
por outro lado, as despesas e os incômodos com a manutenção e a segurança do
imóvel, itens cada vez mais dispendiosos quando se adquire a propriedade nos
moldes tradicionais.
Além disso, para os empresários do setor, aumenta-se a margem de lucro,
dada a grande quantidade de unidades que, com a subdivisão temporal, são postas
à venda em cada empreendimento. Com preços diferenciados ao longo do ano, a
depender da valorização do mês escolhido (verão ou inverno; épocas de férias
escolares ou período letivo), adaptam-se os adquirentes, segundo seu estilo de
vida e respectivo poder aquisitivo, ao planejamento estratégico do instituidor
e ao calendário turístico da região.
Do ponto de vista da indústria turístico-hoteleira e de serviços, a
economia das regiões turísticas é aquecida de forma uniforme em todos os
períodos do ano, não mais de modo sazonal. Ao se promoverem o desenvolvimento e
a estabilidade do comércio local de maneira contínua, o equilíbrio ecológico é
favorecido na medida em que se resguarda o meio ambiente contra a
proliferação indiscriminada de construções, por vezes subutilizadas ou
descuidadas.
Com esse mecanismo, diversos mercados imobiliários conseguiram superar a
crise recessiva em que se encontravam (como ocorreu na Espanha, em Portugal e
na Itália, quando do surgimento das respectivas leis nacionais e da diretiva
europeia). Associados à gestão hoteleira, os serviços se sofisticaram e os
empreendimentos se aperfeiçoaram. Problemas frequentes ocasionados pelo mau uso
de unidades ou necessidade de suspensão da utilização para manutenção periódica
foram resolvidas pela gestão hoteleira inteligente, que potencializa o conjunto
das unidades — em sistema de pool—, oferecendo em locação,
inclusive, as unidades dos multiproprietários que não pretendam, em determinado
ano, utilizar o seu imóvel.
Ao lado disso, o investimento por multiproprietários permitiu a captação
de recursos para a construção de empreendimentos mistos — de hotelaria e
multipropriedade —, nos quais apenas parte das unidades é posta à venda pelo
instituidor, que conserva sob sua propriedade volume estratégico de unidades
destinadas diretamente à oferta hoteleira. Por outro lado, criaram-se bancos
de time sharing de diversos países, permitindo que o
multiproprietário possa, a cada ano, trocar a utilização de sua unidade por uma
semana em local turístico de qualquer continente (intercâmbio associado
ao pool hoteleiro de imóveis disponíveis).
À míngua da intervenção legislativa, a prática brasileira pregressa
utilizou-se da instituição de condomínio ordinário entre os titulares de cada
apartamento inserido em condomínio edilício. Desse modo, 52 condôminos de um
mesmo apartamento estabeleciam, contratualmente, o direito de uso de cada titular
por uma semana do ano. Inúmeros inconvenientes decorriam dessa fórmula, que,
dentre outros problemas, implicava o direito de preferência dos condôminos no
caso de venda por qualquer titular e a divisibilidade do condomínio a qualquer
momento, a pedido de um único condômino, após o prazo de cinco anos da
indivisibilidade do condomínio ordinário prevista pelo Código Civil (artigo
1.320, parágrafo 2º). O Superior Tribunal de Justiça, em decisão por
maioria da 4ª Turma, com relatoria para acórdão do ministro João Otavio de
Noronha, admitiu a natureza típica de direito real da multipropriedade,
rejeitando, no caso examinado, a penhora do imóvel por dívida de um dos
condôminos, de modo a preservar as frações ideais dos demais multiproprietários
(REsp 1.546.165/SP). Não havia, contudo, unanimidade sobre o tema.
Todas essas incertezas foram resolvidas com o reconhecimento, pelo
legislador brasileiro, da autonomia de cada unidade, individualizada no espaço
(apartamento 101, por exemplo) e no tempo (primeira semana de agosto de cada
ano, por exemplo) com sua respectiva matrícula no registro de imóvel, inserida
em regime de condomínio edilício.
Essa fórmula, agora normatizada, foi proposta na minha tese apresentada
à Faculdade de Direito da Uerj em concurso para titular de Direito
Civil em 1990. O saudoso professor Caio Mario da Silva Pereira, autor do
anteprojeto da Lei 4.591/64, aprovado pelo Congresso Nacional sem nenhuma
emenda parlamentar (!), membro da banca examinadora, honrou-me com a nota
máxima e disse concordar inteiramente com a possibilidade de registro de
condomínio edilício composto de multipropriedades. Até então, a maior parte dos
juristas considerava que a multipropriedade seria direito real atípico que,
como tal, não poderia ser instituída no Brasil sem previsão legislativa. Na
ocasião, respeitados registradores com quem conversei consideraram
perfeitamente registrável a instituição de condomínio, ainda na vigência da Lei
de Condomínios e Incorporações (Lei 4591/64), com a individualização de
unidades autônomas mediante a delimitação espacial e temporal (ainda no aludido
exemplo, o apartamento 101 comporta 52 unidades autônomas, número de semanas do
ano). Tal posição, entretanto, nem sempre foi compartilhada pelas
corregedorias.
Pois bem: por se tratar de unidade autônoma, o IPTU há de ser
individualizado e cobrado de cada multiproprietário, assim como as despesas de
luz, gás e água próprias da respectiva unidade, sendo repartidas por cada
multiproprietário as taxas condominiais que, como obrigações propter
rem, oneram o patrimônio pessoal de cada titular. Essa questão se torna
relevante na medida em que o presidente da República vetou dispositivos
(parágrafos 3º, 4º e 5º do artigo 1.358-J do Código Civil) em cuja dicção
se lia: parágrafo 3º: “Os multiproprietários responderão, na proporção de sua
fração de tempo, pelo pagamento dos tributos, contribuições condominiais e
outros encargos que incidam sobre o imóvel”; e parágrafo 4º: “Cada
multiproprietário de uma fração de tempo responde individualmente pelo custeio
das obrigações, não havendo solidariedade entre os diversos
multiproprietários”. Tal veto, contudo, não altera a autonomia das matrículas,
devendo ser afastada, portanto, qualquer interpretação que pretendesse atribuir
ao conjunto dos multiproprietários de um mesmo apartamento a responsabilidade
solidária das referidas despesas individuais.
Para preservar o empreendimento como um todo, o artigo 1.358-S, no
caso de inadimplemento das taxas condominiais, prevê “a adjudicação ao
condomínio edilício da fração de tempo correspondente”. Tal medida
temporária, que caracteriza uma espécie de anticrese legal,
perdurará “até a quitação integral da dívida”, proibindo-se ao
multiproprietário a utilização do imóvel enquanto persistir a inadimplência.
Tal providência, bastante drástica, terá que ser regulada na convenção,
assegurando-se o amplo direito de defesa de cada titular, podendo o condomínio
inserir a respectiva unidade no pool hoteleiro, desde que haja
previsão, nos termos da convenção, de tal destinação econômica.
Nota dissonante mostra-se a previsão do artigo 1.358-T, segundo o
qual “o multiproprietário somente poderá renunciar de forma translativa a
seu direito de multipropriedade em favor do condomínio edilício”. Há aqui
constrangedora incompatibilidade com o sistema, não se compreendendo o que
pretendeu o dispositivo. A rigor, por se tratar de unidade autônoma, o
multiproprietário pode, como em qualquer condomínio edilício, dispor como bem
entender de seu direito real de propriedade, de modo gratuito ou oneroso, desde
que mantenha íntegro o liame visceral entre a propriedade individual (que lhe
franqueia a utilização, com exclusividade, da fração semanal que lhe diz
respeito) e a fração ideal a ela correspondente sobre as áreas comuns.
No mais, o legislador procurou regular, de forma minuciosa, a
administração do empreendimento, compatibilizando os interesses dos
multiproprietários e do condomínio. Há numerosos pontos a serem aprofundados.
Autorizou-se, inclusive, a previsão, pelo instituidor, de fração de tempo
adicional destinada à realização de reparos, que constará da matrícula de cada
unidade, como área (espaço-temporal) comum, sem matrícula específica, para
compartilhar-se o ônus da manutenção das unidades. Trata-se de opção do
instituidor (artigo 1.358, N). Em última análise, tem-se agora segurança
jurídica para a expansão da multipropriedade no Brasil. Está de parabéns o
Congresso Nacional e, em particular, o autor do projeto, senador Wilder Morais,
a quem não conheço pessoalmente, que teve a prudência de auscultar a sociedade
e incorporar sugestões.
Oxalá seja possível aproveitar essa oportunidade para se aquecer o
mercado, na esteira do otimismo econômico que se tem intensificado no setor
turístico-hoteleiro para a próxima década. Afinal, a vocação brasileira para o
turismo mostra-se inegável e é preciso saber aproveitar as oportunidades de
negócios para, com segurança jurídica, desenvolvermos, ainda que tardiamente,
as nossas potencialidades.
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