Todo mundo sabe que uma viagem de avião está sujeita a inúmeros riscos,
que vão desde panes mecânicas até eventos climáticos dramáticos, como
tempestades e furacões, passando pela previsível falha humana nos
controles da aeronave e no monitoramento dos serviços aeroportuários. Risco,
portanto, é o que não falta na aviação. Apesar de tudo, paradoxalmente, as
estatísticas de acidentes mostram que o avião é o meio de transporte mais seguro
do mundo, só perdendo para o elevador — isso mesmo!
Tal proeza só foi possível porque o homem conseguiu identificar e
gerenciar as situações que oferecem risco para as aeronaves nos espaços de
navegação, isso além de criar e aperfeiçoar tecnologias visando à segurança e
conforto de passageiros. Tem sido assim, num continuum, desde 7 de
janeiro de 1910, quando, em Osasco (SP), foi dado o pontapé inicial da aviação
civil no Brasil.
Passados mais de 100 anos, o setor se consolidou como negócio e já
é o terceiro maior mercado doméstico do mundo, só perdendo para a China e o
líder Estados Unidos. Em 2017, segundo levantamento da Agência Nacional de
Aviação Civil (Anac), a aviação brasileira transportou 112,5 milhões de
passageiros pagos no país, sendo 90,6 milhões em voos domésticos e 21,8 milhões
em voos internacionais. O setor contribui com US$ 32,9 bilhões para o
PIB nacional (1,4% no total) e emprega 1,1 milhão de pessoas.
Decididamente, a aviação comercial brasileira não é mais refém de riscos
técnicos, que poderiam inviabilizar a própria atividade, mas se depara com
novos desafios administrativos. Um deles é saber como lidar com o
‘‘empoderamento do cliente-consumidor’’, que começa a ameaçar a viabilidade
comercial do negócio. Não, não se trata de demonizar o Código de Defesa do
Consumidor (Lei 8.078/90), que representou grande avanço na proteção jurídica
dos ‘‘hipossuficientes’’, mas de questionar a ‘‘dose do remédio’’. Afinal, como
dizia a escritora francesa Simone Weil (1909-1943), o direito de alguém é
obrigação de outrem. E, hoje, esses ‘‘direitos’’ crescem desmesuradamente,
onerando os que têm obrigação de satisfazê-los — os prestadores de serviços
‘‘violadores de direitos fundamentais’’.
O nível de proteção legal e jurisprudencial conferido ao consumidor-passageiro
no mercado doméstico brasileiro chegou a tal nível a ponto de estimular o
ajuizamento de ações de reparação na Justiça por contratempos como atrasos de
voos, remarcações de bilhetes ou por outras pequenas intercorrências
previsíveis na cadeia de procedimentos no curso da complexa logística de
embarque-desembarque.
Dados disponibilizados pela Anac revelam que, em 2017, as condenações
judiciais decorrentes de mais de 60 mil ações representaram cerca de 1% dos
custos e despesas operacionais das companhias aéreas nacionais — o equivalente
a R$ 311 milhões. À primeira vista, pode parecer pouco, mas é preciso
considerar que as margens de lucro no setor são baixíssimas, menos de US$ 4 por
passageiro, segundo calcula a Associação Internacional de Transportes Aéreos
(Iata).
Só para ter uma ideia do grau de litigiosidade judicial, uma empresa
norte-americana, operando cerca de 5 mil voos nos EUA, em 2017, responde por
apenas 130 processos naquele país. No mercado brasileiro, com cerca de cinco
voos diários no mesmo período, a mesma empresa teve ajuizados 1.200 processos
judiciais, segundo levantamento da Junta das Companhias Aéreas
Internacionais no Brasil (Jurcaib). Assinale-se que lá fora, tal como no
ambiente doméstico, as companhias associadas à Jurcaib oferecem a seus clientes
o mesmo padrão de serviços, seguindo protocolos similares de operação e
atendimento. Aqui, pelo jeito, o arranjo judicial ‘‘empodera’’ mais o
consumidor.
Ao alto grau de litigiosidade soma-se, ainda, o expressivo montante
arbitrado para as indenizações decorrentes de falhas na prestação desse
serviço, em grande parte por dano moral presumido (in re ipsa). Não
existe uma tabela que padronize o quantum indenizatório por
condenação em danos morais, mas, nas condições do Rio Grande do Sul, falhas
como negativação indevida em bancos de restrição de crédito (SPC, Serasa),
cobrança abusiva, falta de energia/telefonia ou a venda de produtos em
desconformidade com o anunciado rendem condenações que oscilam entre R$ 1 mil e
R$ 10 mil, sendo que a maior parte é estabelecida num patamar entre R$ 3 mil e
R$ 5 mil. Já os atrasos/cancelamentos de voos, extravios de bagagem e perda de
conexão, dentre outros, vêm sendo penalizados num grau muito maior pela Justiça
— de R$ 5 mil a R$ 40 mil, segundo constatação empírica. O Judiciário deve
achar que todas as companhias áreas brasileiras são portentos econômicos como a
American Airlines ou a Lufthansa, ignorando a baixa lucratividade do setor e a
alta carga de impostos.
Quando o Estado sofre condenação por dano moral, pelo menos no RS, o
Judiciário é mais equilibrado, mais ‘‘sóbrio’’, para não onerar em demasia os
cofres públicos. A 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça gaúcho, por
exemplo, construiu um ‘‘parâmetro norteador’’ para reparar presos que cumprem
pena no Presídio Central de Porto Alegre, o pior da América: R$ 500 a cada ano
ou fração de ano de efetivo cumprimento da pena em regime fechado.
Será que o abalo moral de um homem deixado às moscas, num presídio
degradado pela incúria do Estado, é menor do que o daquele executivo que perdeu
o seu voo, mas tinha chances de pegar o próximo? Ou de alguém que teve a
frustração de receber suas malas depois de dois ou três dias? Quem são os
vulneráveis dignos de receber a proteção estatal pelas violações dos direitos
de personalidade assegurados no inciso X do artigo 5º da Constituição?
Portanto, é hora de os legisladores reverem alguns aspectos do CDC, para
que a vantagem competitiva dos consumidores não se traduza numa guerra aberta
contra os fornecedores de produtos e serviços, pelo risco da inviabilidade
comercial do negócio.
O Judiciário brasileiro, por seu turno, precisa investir cada vez mais
nas câmaras especializadas e juizados de conciliação, como faz o Judiciário
gaúcho em parceria com a ferramenta virtual consumidor.gov.br,
monitorada pela Secretaria Nacional do Consumidor (Ministério da Justiça),
Procons, Defensorias, Ministérios Públicos e também por toda a sociedade. Neste
ambiente, com diálogo, boa-fé e transparência, são resolvidas cerca de 80% das
reclamações registradas nessa plataforma. E o melhor: num prazo médio de sete
dias.
Sem dúvida, seria uma sinalização positiva para motivar a entrada das
companhias de ‘‘ultrabaixo custo’’ (ultra low cost) no mercado
doméstico. Como se sabe, o preço competitivo dessas empresas está lastreado nas
condições mais enxutas na entrega do serviço de transporte, o que, certamente,
têm o potencial de acirrar as demandas consumeristas, porque o consumidor
brasileiro é o mais exigente do mundo. Quanto menor a judicialização dos conflitos,
maior a segurança jurídica. Resultado final: mais investimentos.
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