1) qual o recurso cabível quando
o juiz concede liberdade provisória com ou sem cautelares do artigo 319 do
CPP; 2) é possível conferir efeito suspensivo?
Respondemos em tese. O sistema recursal do CPP é o que temos, e não o
que sonhamos. Por exemplo, ao mesmo tempo em que veda o recurso defensivo no
caso de recebimento da denúncia (CPP, artigo 581, I — que não receber a
denúncia ou a queixa), mais adiante, nos embargos infringentes (CPP,
artigo 609, parágrafo único), autoriza somente a defesa interpor. O
sistema recursal está defasado e mereceria uma reforma adequada, consoante já
falamos em nossos livros[1].
Mas hoje precisamos seguir o que existe, no mínimo por uma questão de
legalidade.
Com o que temos, das decisões proferidas em audiências de custódia (CNJ,
Resolução 213) ou análise do flagrante (CPP, artigo 310), por
exemplo, tanto a que mantém como a que libera, em ambas cabe recurso em sentido
estrito (Rese — artigo 581: V – que conceder, negar, arbitrar,
cassar ou julgar inidônea a fiança, indeferir requerimento de prisão preventiva
ou revogá-la, conceder liberdade provisória ou relaxar a prisão em flagrante).
Os recursos terão efeito suspensivo somente nas hipóteses que declara:
“Art. 584. Os recursos terão efeito suspensivo nos casos de perda da fiança, de
concessão de livramento condicional e dos ns. XV, XVII e XXIV do art. 581”.
Em resumo: todas as decisões proferidas pelo juiz na audiência de
custódia ou análise do flagrante não terão efeito suspensivo,
porque o artigo 584 não prevê a hipótese no inciso V. Aqui vigora a
taxatividade recursal: só cabe nas hipóteses e modo previstos em lei.
Muitas vezes o Ministério Público fica insatisfeito com a concessão de
liberdade provisória (e cautelares), interpondo corretamente o recurso em
sentido estrito (CPP, artigo 581, V) e, paralelamente, impetrava mandado
de segurança para conferir efeito suspensivo. Entretanto o Superior Tribunal de
Justiça editou a Súmula 604: “Mandado de segurança não se presta para
atribuir efeito suspensivo a recurso criminal interposto pelo Ministério
Público.”
A razão forte é a de que “a jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça é firme no sentido do descabimento de mandado de segurança para
conferir efeito suspensivo a recurso em sentido estrito interposto a decisão
que concede liberdade provisória, por ausência de amparo legal e por
tal manejo refugir ao escopo precípuo da ação mandamental. 3. Assim,
o manejo do mandado de segurança como sucedâneo recursal, notadamente com o
fito de obter medida não prevista em lei, revela-se de todo inviável,
sendo, ademais, impossível falar em direito líquido e certo na ação mandamental
quando a pretensão carece de amparo legal. Precedentes” (HC
368.906/SP).
Logo, não há previsão legal para atribuir efeito suspensivo a recurso
que não o tenha em matéria penal. Só cabe nas hipóteses legais. Caso
exemplar foi a decisão do STF na hipótese de não aplicação da suspensão dos
prazos no período de janeiro, previsto no novo CPC[2].
Mas a sanha autoritária não encontra limites. Valendo-se do que se
chamava de “poder geral de cautela”, nem mais previsto no CPC/2015,
invocando-se uma analogia inexistente[3],
ainda persiste a concessão. No regime do CPC/1973, falava-se em “poder geral de
cautela” nos artigos 797 e 798. O novo CPC indica agora tutela de urgência e
tutela de evidência (artigo 297: “o juiz poderá determinar as medidas que
considerar adequadas para efetivação da tutela provisória”. E: artigo 300: “a
tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a
probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do
processo”. Entenda-se de uma vez por todas: não se pode invocar analogia com o
CPC se lá não existe mais poder geral de cautela nos moldes anteriores, aliás,
categoria inválida no processo penal em que vigora a legalidade expressa para
restrição de liberdade. Não se pode inventar recursos ou jeitinhos sem
expressa previsão legal, sob o mote de se fazer controle ideológico de
magistrados que pensam diferente.
Portanto, é preciso destacar[4]:
no processo penal, não existe poder geral de cautela nem medidas cautelares inominadas.
No processo penal, forma é garantia. Logo, não há espaço para “poderes gerais”,
pois todo poder é estritamente vinculado a limites e à forma legal. O processo
penal é um instrumento limitador do poder punitivo estatal, de modo que ele
somente pode ser exercido e legitimado a partir do estrito respeito às regras
do devido processo. E, nesse contexto, o princípio da legalidade é fundante de
todas as atividades desenvolvidas, posto que o due process of law estrutura‑se
a partir da legalidade e emana daí seu poder.
A forma processual é, ao mesmo tempo, limite de poder e garantia para o
réu. É crucial para compreensão do tema o conceito de fattispecie
giuridica processuale[5],
isto é, o conceito de tipicidade processual e de tipo processual, pois forma é
garantia. Isso mostra, novamente, a insustentabilidade de uma teoria unitária,
infelizmente tão arraigada na doutrina e jurisprudência brasileiras, pois não
existe conceito similar no processo civil.
Portanto, é completamente errado invocar poder geral de cautela — que
não existe no processo penal — para atribuir efeito suspensivo a um recurso
fora dos casos previstos em lei (violação da reserva legal). No regime do
devido processo legal, somente cabe a interposição de recurso e efeito
suspensivo nas hipóteses previstas em lei. Ausente lei em sentido estrito,
descabe a analogia.
Respondemos ao questionamento: 1) cabe recurso em sentido estrito das
decisões proferidas em audiência de custódia e análise de flagrantes (CPP,
artigo 581, V); 2) não é possível conferir efeito suspensivo ativo, ou
seja, se o juiz soltou não, cabe prender por ausência de previsão legal, na
linha da razão forte da Súmula 604 do STJ. Este é o regime legal, mas se
inventa muito no cotidiano forense. A lei não serve de barreiras para quem acha
que ela é obstáculo. Se conferido efeito suspensivo, cabe a interposição de
Habeas Corpus ou reclamação constitucional, a depender da hipótese.
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