6 de julho de 2017, 6h33
Se determinada pessoa crê que sofreu uma lesão ou que se encontra na
iminência de sofrê-la, poderá resolver-se amigavelmente com o suposto agressor.
Havendo, entretanto, resistência deste ou daquele, poderá o interessado
provocar a atividade estatal jurisdicional, possuindo razão ou não. Eduardo
Couture afirma que é direito do “demandado” o comparecimento perante o tribunal[1], o que significa dizer que, mesmo
valendo-se do Direito de Petição (artigo 5º, XXXV, da CR/88), não haverá
um vínculo de exigibilidade entre autor e réu, sujeitando este à vontade
daquele. Admite-se, então, com Eduardo Couture, que, até a existência da coisa
julgada, impera-se a incerteza[2].
Ambas as partes, dessa forma, almejam uma resposta decisória[3] do Estado; ao Estado-Judiciário é
exigido um pronunciamento de mérito satisfativo (artigo 4º do CPC/2015),
seja através de um julgamento antecipado (parcial ou total) ou não (de mérito).
Entretanto, antes do réu opor-se — através da contestação — à pretensão do
autor, o CPC/2015 pretendeu, na visão de Luiz Guilherme Marinoni, “estimular a
solução consensual dos litígios (art. 3º, §2º), concedendo à autonomia privada
um espaço de maior destaque no procedimento”[4].
Dessa forma, o artigo 334 do CPC/2015 estabeleceu que, “se a
petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de
improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou
de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o
réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência”. O autor será intimado por
meio do seu advogado, e o réu deverá ser citado[5] (artigo 238, CPC/2015) para
comparecerem na audiência inaugural.
Da leitura do artigo 334, parágrafo 4º, do CPC/2015, infere-se que
a realização da audiência inaugural é obrigatória[6], admitindo-se, todavia, a sua não
realização somente “se ambas as partes manifestarem, expressamente,
desinteresse na composição consensual ou quando não se admitir a
autocomposição” (artigo 334, parágrafo 4º, I e II).
Conquanto tenhamos admitidos em outros trabalhos[7], escorados na doutrina de Luiz Guilherme
Marinoni, que se deve fomentar o diálogo e os comportamentos cooperativos e não
agressivos dos sujeitos processuais, de modo a reconhecer que, “muitas das
vezes, a decisão judicial não é a solução mais adequada”, considerando “o
modelo multiportas de composição de litígios”[8], devemos refletir sobre duas situações
das quais concordamos serem hipóteses em que se dispensa a designação da
audiência inaugural[9], em virtude da (parcial) desarmonia entre
a Lei de Locação de Imóveis urbanos (Lei 8.245/1991) e o CPC/2015 e a
incompatibilidade da autocomposição, respectivamente, nos procedimentos comuns
cujas pretensões sejam o despejo por falta de pagamento e o despejo por
denúncia vazia.
O artigo 4º da Lei 8.245/1991, que disciplina a locação de imóveis
urbanos, ratifica um dos princípios que norteiam o Direito Contratual: pacta sunt servanda; “as convenções contratuais devem ser cumpridas”[10]. Nos dizeres de Sílvio Venosa, “fixado o
pacto para um prazo determinado, ambas as partes contam com o exaurimento desse
prazo, no mínimo, pois assim foi convencionado”[11]. Logo, considerando aquele dispositivo,
não pode o locador desfazer a locação e reaver o imóvel antes do término do
prazo contratual[12], salvo se, dentre outras alternativas,
ajuizar um procedimento (comum) pretendendo o despejo em razão da falta de
pagamento de aluguel e demais encargos (artigo 9º, III, da Lei
8.245/1991).
Dessa maneira, ajuizado o procedimento judicial de despejo por falta de
pagamento pelo locador, o artigo 62, II, do mesmo dispositivo, faculta ao
locatário e fiador “purgar a mora e evitar a rescisão do contrato desde que
efetuem, no prazo de 15 dias, contados da citação, o pagamento de débito
atualizado, independente de cálculo e mediante depósito judicial”[13].
O que se percebe é que tal dispositivo possui sintonia com o revogado
CPC/73, em especial com o artigo 285, o qual previa que, “estando em
termos a petição inicial, o juiz a despachará, ordenando a citação do réu, para
responder; do mandado constará que, não sendo contestada a ação, se presumirão
aceitos pelo réu, como verdadeiros, os fatos articulados pelo autor”, ou seja,
o prazo de 15 dias concedido coincidia tanto com a possibilidade de purgar-se a
mora quanto com a apresentação de resposta — em especial a contestação. Ocorre
que, com o advento do CPC/2015, tal sintonia se desfez[14], já que, efetivada a citação,
facultar-se-á ao réu tanto purgar a mora em 15 dias quanto comparecer na
audiência inaugural de conciliação ou de mediação, a partir da qual, não
havendo acordo, iniciará o prazo para o oferecimento da contestação
(artigo 335, I, CPC/2015)
Assim, existente um novo procedimento entre a citação e a apresentação
de defesa do réu — a audiência do artigo 334 —, não é razoável facultar ao
locatário e fiador purgar a mora em 15 dias, obedecendo o que determina a Lei
8.245/1991, e, posteriormente, comparecer à audiência inaugural, cujo propósito
seria dirimir um conflito sobre a realização de um pagamento que aqueles já
tiveram a oportunidade de fazer e não o fizeram; não purgada a mora no prazo
mencionado, resta imprestável a realização da audiência inaugural, cuja
designação com antecedência mínima de 30 dias e máxima indefinida apenas
fomentaria e aumentaria a inadimplência dos locatários e dos fiadores, uma vez
que estes poderiam aguardar a realização da audiência — cuja espera poderia
chegar a quatro meses, por exemplo —, e, frustrada a autocomposição, ganharem
mais 15 dias úteis para se justificarem sobre a (im)pontualidade dos encargos,
lesando sobremaneira o locador.
Logo, inadmitindo-se a designação da audiência inaugural[15], resta-se razoável, então, manter-se a
concomitância da purgação da mora e da apresentação da contestação, assim como
era no CPC/1973[16], a partir da qual, saneado e organizado
o processo, permitir-se-á o julgamento imediato (antecipado) do mérito, o que
reduziria a sujeição do locador à inércia proposital do locatário.
Ainda, vale citar outro procedimento que merece a atenção do operador do
Direito que nos obriga a repensar a obrigatoriedade da audiência inaugural, ou
seja, aquele cuja pretensão é a rescisão contratual, com o consequente despejo,
em razão da intenção de retomada do imóvel simplesmente porque o locador,
verificando a indeterminação do prazo contratual, não deseja mais a mantença da
locação (denúncia vazia). Nesses casos, indeterminando-se[17] o contrato, o locador poderá
denunciá-lo por escrito, desde que concedidos ao locatário 30 dias para a
desocupação (artigo 57 e artigo 46, parágrafo 2º, da Lei 8.245/1991)[18]. “A notificação denunciando a locação
autoriza, decorridos seus trinta dias, o ajuizamento da ação de despejo.”[19]
Dessa maneira, cremos que o fato de o locatário notificado não desocupar
o imóvel em 30 dias, e proposto o procedimento judicial, resta imprestável a
audiência inaugural de conciliação ou de mediação, vez que resta claro que o
locador almeja apenas a retomada do imóvel — o despejo do locatário; ausente,
portanto, a possibilidade de autocomposição (334, parágrafo 4º, II, CPC/2015).
Insistir na audiência inaugural, neste caso, é tratá-la como se audiência de
ratificação fosse (Lei 6.515/1977): é perguntar para o locador se ele tem
certeza que deseja rescindir o contrato. Não faz sentido, data maxima venia!
Destarte, reconhece-se, como dito outrora, a importância do
aperfeiçoamento e aprimoramento das técnicas de resolução de conflito, de modo
a retirar o protagonismo das partes e do juiz, destacando a audiência inaugural
e os centros judiciários de solução dos conflitos[20]. Contudo, as individualidades dos dois
procedimentos expostos acima devem direcionar-nos ao reconhecimento de que a
audiência inaugural não será realizada por ser inócua (primeiro caso) e por não
admitir a autocomposição (segundo caso), sendo a sua designação pro forma[21], pois outros
mecanismos já foram utilizados na tentativa de fazer desaparecer o conflito.
[1] Nas palavras
de Eduardo Couture: “Quando o demandado promover sua demanda perante o Tribunal
poderá ou não ter razão, e, contudo, ninguém terá de discutir seu direito para
se dirigir ao Tribunal pedindo-lhe uma sentença favorável. O que o demandado
poderá lhe negar é o seu direito de obter uma sentença favorável, mas nunca seu
direito em comparecer perante o Tribunal. Esse é um direito que pertence ainda
aos que não têm razão” (COUTURE, Eduardo J. Introdução ao Estudo do Processo Civil. Trad. Hiltomar Martins Oliveira.
Belo Horizonte: Líder, 2008, p. 18).
[2] COUTURE, Eduardo J. Introdução ao Estudo do Processo Civil. Trad. Hiltomar Martins Oliveira.
Belo Horizonte: Líder, 2008, p. 54.
[3] Reconhece-se que, a partir do CPC/2015,
o interessado almeja não somente a sentença, mas, também, a decisão interlocutória,
uma vez que a partir desta poderá admitir-se uma execução definitiva através do
julgamento imediato parcial do mérito, nos termos do artigo 356, parágrafo 3º,
do CPC/2015.
[4] MARINONI, Luiz Guilherme et alli. Novo Curso de Processo Civil. Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 179.
Da citação surgirá a possibilidade de o réu apresentar a sua resposta,
salientando que alguma dessas manifestações serão apresentadas posteriormente à
audiência inaugural (artigo 335, I, CPC/2015), enquanto outras deverão ser
apresentadas antes (artigo 113, parágrafo 2º, CPC/2015). Sobre este último,
ver em BRETAS, Ronaldo de Carvalho Dias et alli. Estudo Sistemático do NCPC. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p.
117.
[6] Alexandre Freitas Camâra adverte que,
em razão da voluntariedade da mediação e da conciliação, a realização da
audiência inaugural não é obrigatória, bastando que uma das partes manifeste o
seu desinteresse (CAMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2016, p. 201).
[8] MARINONI, Luiz Guilherme et alli. Novo Curso de Processo Civil. Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 181.
Da leitura do artigo 1.046, parágrafo 2º, do CPC/2015, o qual admite que
“permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em
outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código”, defender-se-á
neste ligeiro trabalho que o réu deverá ser citado não para comparecer na
audiência inaugural, sendo a sua resposta (contestação, purgação da mora)
apresentada nos termos do artigo 335, III, do CPC/2015.
[12] Nada impede que as partes, de comum
acordo, rescindam o contrato. Ademais, registra-se que o locatário poderá
devolver o imóvel, desde que pague a multa pactuada (artigo 4º da
Lei 8.245/1991).
[13] Faculdade limitada a uma vez nos 24
meses anteriores à propositura do procedimento judicial (artigo 62,
parágrafo único, da Lei 8.245/1991).
[14] Por mais que o artigo 1.046,
parágrafo 2º, CPC/2015 admita que permanecem em vigor as disposições especiais dos
procedimentos regulados em outras leis, aplicando-o supletivamente, percebe-se
que a resposta não é tão simples o quanto parece; a Lei de Locação (1991)
determina a purgação da mora quando da citação, sem prever a obrigatoriedade da
designação da audiência inaugural. Restando claro que deve haver uma análise
crítica sobre a aplicação supletiva do CPC/2015 nestes casos.
[16] Não se pretende “reviver” o revogado
CPC/1973, entretanto, levar-se-á em conta o já mencionado artigo 1.046,
parágrafo 2º, do CPC/2015, e a lógica procedimental do artigo 62 da Lei
8.245/1991.
[17] Salienta-se que o prazo do contrato
indetermina-se quando: “findo o prazo estipulado, se o locatário permanecer no
imóvel por mais de trinta dias sem oposição do locador, presumir-se-á
prorrogada a locação nas condições ajustadas, mas sem prazo determinado”
(artigo 56, parágrafo único, da Lei 8.245/1991).
[18] Existem algumas individualidades sobre
as intenções de retomada de imóveis residenciais que não serão objeto de
exposição, mas que merecem a devida leitura (artigos 46 e 47, da
Lei 8.245/1991).
[20] Theodoro júnior, Humberto et
alli. Novo CPC. Fundamentos e
Sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
[21] Acrescente-se que, não havendo
prejuízo às partes, não há nulidade ante a não realização da audiência
inaugural (artigo 282, parágrafo 1º, CPC/2015). Pelo contrário, a sua
realização importará prejuízos sobretudo financeiros.
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