A Constituição determina que o Estado promoverá a defesa do consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, trouxe as bases para tal,
concedendo à administração pública a competência para aplicar sanções. A tutela
das relações de consumo, portanto, se dá em âmbito judicial, por força da
inafastabilidade dos litígios do Poder Judiciário e administrativo, por
determinação legislativa.
A presença de dois âmbitos de tutela traz efeitos distintos em cada um
deles. O STJ vem consolidando o entendimento de que cabe ao Poder Judiciário
tutelar os direitos do consumidor perante o fornecedor, determinando a
recomposição da relação jurídica no caso concreto. À administração pública, por
sua vez, caberia a fiscalização e punição das infrações administrativas.
Tal distinção decorre das diferenças entre o poder jurisdicional e o
poder de polícia. O poder jurisdicional tem como finalidade a solução imparcial
de conflitos, sendo esta elemento fundamental. Daí as normas que tutelam
extensivamente a imparcialidade do juízo, como a vedação aos tribunais de
exceção e o impedimento e a suspeição dos juízes.
O poder de polícia, por sua vez, traz como fundamento o interesse
público, limitando por meio de multas o exercício dos direitos individuais que
possam prejudicar o bem-estar coletivo. Trata-se da limitação da liberdade
individual em prol da liberdade difusa, o que não é contraditório e encontra suficiente
fundamento legal e constitucional.
O poder jurisdicional e o poder de polícia, portanto, têm fundamento
comum (a pacificação social), mas se aplicam a relações muito diferentes.
O poder jurisdicional tutela a relação entre as partes, enquanto o poder de
polícia restringe e limita a liberdade individual de forma a evitar a
perturbação da ordem social. Dessa diferença de status surge a diferença de
tratamento entre as partes.
No processo judicial entre consumidor e fornecedor, marca fundamental
dada pelo CDC é a inversão do ônus da prova, não absoluta, mas relativa, em
benefício do consumidor: embora presuma-se verdadeira a alegação do consumidor,
há a possibilidade de se produzir prova em sentido contrário.
A inversão do ônus da prova se dá em virtude da assimetria de informação
a respeito dos produtos e serviços, não do porte econômico. O relevante é que o
consumidor não possua tanto conhecimento sobre o produto quanto o fornecedor.
Por isso, a pessoa jurídica pode ser consumidora também, desde que prove
inexistir afinidade entre o bem adquirido e seu objeto social, afastando dele a
condição de insumo.
Com o desenvolvimento do Direito Administrativo, fortaleceu-se o ideal
de proteção do indivíduo. O interesse estatal, que era soberano, foi sendo restringido.
A doutrina the king can do no wrong foi sendo
relegada ao rodapé dos livros de história. Entende-se hoje que, embora haja a
primazia do interesse público, este não pode suprimir os direitos individuais,
sendo necessário para qualquer punição o devido processo legal.
A necessidade do devido processo legal deriva não apenas do texto
constitucional, mas também da Lei do Processo Administrativo, militando em
favor do particular a presunção de inocência. A esse respeito, Alexandre de
Moraes leciona que “há a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do
indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos
ao total arbítrio estatal, permitindo-se o odioso afastamento de direitos e
garantias individuais e a imposição de sanções sem o devido processo legal e
decisão definitiva do órgão competente”.
Na tutela dos Direitos do Consumidor, portanto, a relação entre
fornecedor e consumidor e entre fornecedor e administração são distintas e
marcadas por diferenças essenciais. No primeiro caso, há a marca da
hipossuficiência consumerista, que acarreta na inversão do ônus da prova. No
segundo, há a marca das garantias e liberdades fundamentais, presumindo-se
inocente o fornecedor até prova em contrário, respeitado sempre o devido
processo legal.
Isso, entretanto, não é o que se observa da atuação de grande parte dos
Procons do país. Não são raras as vezes em que a autarquia impõe pesadas multas
ao fornecedor sob o argumento de que milita em favor do consumidor a presunção
de veracidade e a inversão do ônus da prova. Porém, essa inversão é um
benefício que assiste ao consumidor, não à administração.
Não sofre a administração da hipossuficiência e falta de informação do
consumidor. Em verdade, presume-se que ela seleciona seus agentes e corpo
técnico, tendo a possibilidade de averiguar a existência ou não de culpa,
podendo requisitar pareceres, ofícios e tomar depoimentos.
Por outro lado, não causa nenhuma ofensa ao ordenamento jurídico a
existência de responsabilização objetiva perante o consumidor e a absolvição do
fornecedor perante a administração. A responsabilidade objetiva perante o
consumidor advém da Teoria do Risco Empresarial, cabendo ao fornecedor
contingenciar-se para tal. A punição estatal, por sua vez, tem natureza de
pena e deve ser aplicada na medida da culpa.
Embora “pena” remeta ao recolhimento do indivíduo à prisão, as multas
também possuem esse caráter, e sua aplicação deve obedecer a todos os
princípios, garantias e liberdades fundamentais. Mesmo diante de um suposto e
abstrato conceito de “bem geral”, deve-se lembrar que a liberdade e a inocência
são a regra. A condenação e a punição é que são a exceção.
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