Era prática comum o suspeito ou qualquer pessoa abordada pelos agentes
da lei terem o aparelho celular vasculhado, mesmo sem autorização judicial. A
questão era controversa e significava a invasão da privacidade em nome dos
interesses ditos coletivos de apuração da verdade. Superavam-se as garantias constitucionais
da intimidade e da vida privada, previstos no artigo 5º, X, da
Constituição da República. Alguns chegavam a invocar a “Katchanga”, como diz
Lenio Streck (aqui),
da ponderação de princípios (sic), como se os
direitos e garantias individuais pudessem ser opção do agente da lei. A reserva
da jurisdição — só o juiz pode autorizar a quebra do sigilo e das mensagens —
era desconsiderada em nome dos aparentes resultados. De certa forma, essa
postura é fruto do consequencialismo, do punitivismo e de uma ressignificação
da máxima de que “os fins justificam os meios”.
A novidade consiste no recente julgamento proferido pelo Superior Tribunal
de Justiça no Habeas Corpus 89.981, de Minas Gerais, em que constou da ementa:
“1. Embora a situação retratada nos
autos não esteja protegida pela Lei n. 9.296/1996 nem pela Lei n. 12.965/2014,
haja vista não se tratar de quebra sigilo telefônico por meio de interceptação
telefônica, ou seja, embora não se trate violação da garantia de
inviolabilidade das comunicações, prevista no art. 5º, inciso XII, da CF, houve
sim violação dos dados armazenados no celular do recorrente (mensagens de texto
arquivadas – WhatsApp ).
2. No caso, deveria a autoridade
policial, após a apreensão do telefone, ter requerido judicialmente a quebra do
sigilo dos dados armazenados, haja vista a garantia, igualmente constitucional,
à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, prevista no art. 5º, inciso
X, da CF. Dessa forma, a análise dos dados telefônicos constante dos aparelhos
dos investigados, sem sua prévia autorização ou de prévia autorização judicial
devidamente motivada, revela a ilicitude da prova, nos termos do art. 157 do
CPP. Precedentes do STJ.
3. Recurso em habeas corpus provido,
para reconhecer a ilicitude da colheita de dados do aparelho telefônico dos
investigados, sem autorização judicial, devendo mencionadas provas, bem como as
derivadas, serem desentranhadas dos autos”.
Conforme os subscritos vinham defendendo em seus livros[1], a temática partia de uma premissa
equivocada, ou seja, de que o conteúdo digital estava no aparelho e, assim, tal
qual outro objeto apreendido poderia ser analisado pela autoridade
policial. O equívoco decorre do fato de que a intimidade e a privacidade
armazenadas no dispositivo transcendem os limites analógicos de bens materiais,
abarcando aspectos que se reconheceu tutela de direitos fundamentais[2].
O óbice que poderá se invocar é o de que se perde tempo com pedidos de
quebra de sigilo. Entretanto, a forma é garantia da eficácia dos direitos
fundamentais, tendo-se ainda que efetivar os protocolos de cadeia de
custódia, bem assim de responsabilidade pela extração do conteúdo. O Estado
precisa agir de modo legítimo para que se possa produzir condenações
democráticas. Aliás, nunca defendemos a ausência de punição, via Direito Penal,
e sim o respeito pelas regras do jogo. E as regras do jogo democrático exigem
certas diligências. Punir é necessário, mas não a qualquer preço e muito menos
com violação de direitos e garantias fundamentais.
A extração de dados e mensagens implica no reconhecimento da privacidade
do agente que não pode, pela simples abordagem, perder-se em análise de
seu histórico e arquivos por profissionais que não são, necessariamente,
preparados para garantia da autenticidade e validade das provas extraídas. A
diligência de solicitar autorização judicial e ter um profissional habilitado,
no fundo, garante a qualidade da prova e produz melhores decisões. Além de
assegurar a eficácia do direito fundamental da intimidade, permite que se faça
o controle de credibilidade do material, por meio da documentação de toda a
cadeia de custódia[3], garantindo que o material juntado ao
processo corresponda “ao mesmo” que foi extraído.
O que lamentamos é que os mesmos julgadores que tomaram conhecimento da
prova excluída possam continuar julgando o caso, uma vez que você não será
capaz de esquecer o que leu aqui, assim como os julgadores não poderão deletar
o conteúdo já entranhado aos autos. Por isso somos defensores da substituição
dos julgadores por novos que tenham originalidade cognitiva (aqui)
e possam condenar ou absolver de modo democraticamente isento (aqui).
Enfim, na ânsia por invadir a prova que poderia ser obtida, no fundo, os
agentes da lei contribuem para a impunidade. O correto, espera-se, daqui em
diante, é a observância regular das regras do jogo. Leia o voto todo do STJ (aqui).
E isto serve aos militares na dita intervenção no Rio de Janeiro e demonstra a
importância do Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça, já que o pedido
havia sido indeferido.
[1] LOPES JR,
Aury. Direito Processual Penal. São Paulo:
Saraiva, 2018; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis:
Empório do Direito, 2017.
[2] ROBL FILHO, Ilton Norberto. Direito, Intimidade e Vida Privada: Paradoxos Jurídicos e Sociais na
Sociedade pós-moralista e Hipermoderna. Curitiba: Juruá, 2010.
[3] PRADO, Geraldo. Prova Penal e Sistemas de Controles Epistêmicos: a quebra da cadeia de
custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo:
Marcial Pons, 2014, p. 44: “A indispensabilidade de um eficiente sistema de
controles epistêmicos goza de especial importância nos dias atuais, porque
vulgarizou-se o apelo, no âmbito da investigação, aos métodos ocultos de
pesquisa (interceptação das comunicações e afastamento de sigilos) e de um modo
geral a totalidade dos elementos informativos que subsidiam acusações
encontra-se alicerçada em elementos obtidos dessa maneira”. MAGALHÃES,
Assusete. Quebra de sigilo de dados e das
comunicações telefônicas: o dever estatal de preservação da fonte de prova. In:
Aury Lopes Jr. é
doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual
Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências
Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da Rosa é
juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo
Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali
(Universidade do Vale do Itajaí).
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