A Lei Federal 13.546/17, que modificou o Código de Trânsito
Brasileiro, entra em vigor nesta quinta-feira (19/4), após vacatio legis de 120 dias assinalada em seu artigo 6º, consoante parágrafo 1º do
artigo 8º da Lei Complementar 95/98, que rege a matéria[1].
A novel legislação representa mais uma reforma nas engrenagens do CTB
(Lei 9.503/97), com a pretensão de calibrar as disposições afetas aos crimes
praticados na direção de veículos automotores para que funcionem como freios ao
sanguinário sistema viário nacional[2].
Trata-se da sexta alteração no CTB relacionada às suas normas penais, na
seguinte ordem cronológica, com os respectivos destaques: 1ª) Lei 11.275/06:
acrescentou causa de aumento no homicídio culposo pela embriaguez; 2ª) Lei
11.705/08: primeira “Lei Seca”, revogou a aludida majorante pela embriaguez, e
ainda modificou e atropelou o crime de embriaguez ao volante, ao exigir teor
alcoólico taxativo no tipo penal; 3ª) Lei 12.760/12: segunda “Lei Seca”,
retificou a redação do delito de embriaguez ao volante e viabilizou outros
meios probatórios; 4ª) Lei 12.971/14: inseriu “pseudoqualificadora” pela
embriaguez no homicídio culposo de trânsito no parágrafo 2º do artigo 302, com
idêntica quantidade de pena da modalidade simples; 5ª) Lei 13.281/16: revogou a
citada e desastrosa “pseudoqualificadora”; e, 6ª) finalmente, a recente
Lei 13.546/17, ora comentada.
Em apertada síntese, foram quatro as modificações promovidas pela Lei
13.546/17 no CTB. A primeira cuida dos critérios para a dosimetria da pena, via
adição do parágrafo 4º no artigo 291, pelo qual prepondera a avaliação da
culpabilidade do agente e das circunstâncias e consequências do delito de
trânsito na fixação da reprimenda, seguindo as diretrizes do artigo 59 do
Código Penal.
A segunda e a terceira inovações tratam dos delitos de homicídio e lesão
corporal culposos na condução de veículo automotor.
Para o homicídio culposo, cria-se uma qualificadora ao motorista que
esteja sob influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine
dependência, pelo acréscimo do parágrafo 3º no artigo 302 do CTB, cominando
patamar mais severo de pena de 5 a 8 anos de reclusão, superior ao do tipo
simples do caput do dispositivo,
de 2 a 4 anos de detenção.
Já na lesão corporal culposa também foi inserida qualificadora no
parágrafo 2º do artigo 303 do CTB, sancionada com reclusão de 2 a 5 anos
quando o agente estiver embriagado por álcool ou outra substância psicoativa e resultar
lesão corporal grave ou gravíssima[3]. De igual modo, confere tratamento mais
rigoroso que a infração de menor potencial ofensivo da figura simples do caput do artigo 303 do CTB, apenada com detenção de 6 meses a 2 anos.
A quarta mudança operada pela Lei 13.546/17 tem por objeto o delito
popularmente conhecido como “racha”, do artigo 308 do CTB, mediante inserção da
conduta de participar de exibição ou
demonstração de perícia em manobra de veículo automotor ao tipo
penal, além das práticas já previstas de corrida, disputa ou competição
automobilística não autorizada, e manteve a exigência de gerar risco à
incolumidade pública ou privada (crime de perigo concreto).
Como se nota, a principal novidade ocorre nas infrações penais que
acarretam morte ou ferimentos por motoristas sob estado de embriaguez, antiga
celeuma que acompanha o diploma de trânsito desde a sua entrada em vigor.
A Lei 13.546/17 deve arrefecer discussões e interpretações distorcidas
acerca da banalização da aplicação do instituto do dolo eventual em detrimento
da culpa consciente para os delitos de trânsito cometidos por motoristas
embriagados com vítimas fatais ou feridas. Espera-se que enfim seja
compreendido o equívoco na cognição do binômio morte e embriaguez como uma
operação simplista e atécnica a ensejar a imputação autômata do dolo eventual.
Ao inserir a imprudência no ato de dirigir bêbado como circunstância
qualificadora do homicídio culposo do artigo 302 do CTB, atrelada a reprimenda
penal mais elevada, a nova redação legal consolida a culpa consciente como
regra, pela qual o sujeito prevê a possibilidade do resultado danoso, porém crê
que pode evitá-lo com sua habilidade[4]. Torna excepcional, mas não rechaça em
definitivo (e nem poderia) a configuração do dolo eventual, que reclama
representação e aceitação do resultado pelo agente e, sobretudo, indiferença
deste às eventuais consequências de seu comportamento, com total desapreço à
vida e à integridade física de terceiros, bens jurídicos tutelados pela norma[5].
A derrapagem legislativa, para não passar incólume, ocorre na
qualificadora da lesão corporal culposa do artigo 303 do CTB. Isso porque as
condições cumulativas (embriaguez e lesão grave ou gravíssima) rompem com
paradigma do Direito Penal pátrio, que até então não distinguia o enquadramento
jurídico em razão da gravidade dos ferimentos a título culposo, aspecto
considerado somente na dosimetria da pena em sede de sentença condenatória[6].
O imbróglio deve se concentrar na solução jurídica para os acidentes com
motoristas bêbados que ocasionem lesões leves, cenário que consubstancia grande
parcela dos casos concretos. A nova lei restringe o debate, mas o mantém no
tocante à possibilidade de concurso entre os delitos de lesão culposa leve e
embriaguez ao volante dos artigos 303, caput e 306 do CTB. Diante do princípio da subsidiariedade, o delito de
perigo (embriaguez ao volante) deveria ser absorvido pelos crimes de dano
(lesão ou homicídio), porquanto a conduta típica do primeiro integra as figuras
penais e existe para impedir a concretização dos segundos, evitando ainda
o bis in idemquanto ao estado de
embriaguez do agente.
Destarte, para o homicídio e para as lesões graves e gravíssimas culposos,
a resposta criminal passa a ser mais técnica e adequada com as correlatas
qualificadoras introduzidas. Já para a lesão leve, por ausência de previsão, a
tendência será prevalecer a aplicação do concurso formal entre os delitos, na
medida em que a absorção da embriaguez ao volante pela lesão culposa leve
do caput do artigo 303
do CTB implica incongruente e esdrúxula pena mais branda para o motorista
bêbado.
De qualquer maneira, a influência de álcool ou outra substância
psicoativa torna incondicionada a ação penal nas lesões culposas de trânsito,
na força do artigo 291, parágrafo 1º, inciso I do CTB, ao afastar a incidência
do artigo 88 da Lei 9.099/95.
Ademais, vale lembrar que o crime de embriaguez ao volante não sofreu
transformações com a reforma legislativa e, dentre os meios aptos a constatar a
“capacidade psicomotora alterada”, elementar do tipo penal, estão a
concentração etílica igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de
sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar,
índices aferíveis, respectivamente, por exame de material hemático do motorista
suspeito e pelo conhecido teste do “etilômetro”, que demandam a anuência do
investigado pelo clássico postulado da não autoincriminação, sem prejuízo de emprego
de outros meios probatórios, notadamente exame clínico, depoimentos e registros
em áudio e vídeo[7].
A repercussão inicial ocorrerá nos plantões de polícia judiciária,
sobretudo em relação às prisões em flagrante de motoristas suspeitos
capturados, decretadas pelos delegados de polícia após a devida apreciação
jurídica dos fatos e decisão pela classificação nas mencionadas novas qualificadoras
do CTB[8], cujas penas máximas suplantam 4 anos e,
em tese, obstam o arbitramento de fiança extrajudicial pela restrição
injustificada do artigo 322 do CPP[9].
Entretanto, na apreciação judicial das custódias flagranciais, como
regra não poderá o juiz de Direito determinar a conversão em prisão preventiva,
visto que os requisitos do artigo 313 do CPP não arrolam crimes culposos nas
hipóteses de admissibilidade da segregação provisória. Logo, ainda que a lei
não admita a fiança na delegacia, no fórum a liberdade será concedida mesmo sem
a contracautela econômica, salvo em raro descumprimento de medidas cautelares
diversas impostas em casos anteriores, pela exegese extraída da conjugação do
parágrafo único do artigo 312 com os parágrafos 4º e 6º do artigo 282, todos do
estatuto de rito criminal[10].
Não obstante o tímido avanço implantado, as barbeiragens e a velocidade
reduzida no aprimoramento dos crimes de trânsito, o legislador demonstra
preocupação em trafegar por essa estrada sinuosa, com obstáculos no trajeto
como a falta de conscientização e de prevenção eficiente, cuja vitória na linha
de chegada depende da atitude cidadã de cada motorista.
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